A Revolução de 25 de Abril de 1974

 

Assinala-se amanhã, quinta-feira, os 50 anos da Revolução do 25 de Abril em Portugal, o dia em que foi instituída a democracia, depois de 48 anos de ditadura de um regime que apodrecia, do orgulhsamente sós, o regime fascista de António Oliveira Salazar e Marcelo Caetano.
Na madrugada desse dia, militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) ocuparam os estúdios do Rádio Clube Português, em Lisboa, e através da rádio, elucidaram a população sobre o que queriam para o país: a instituição de um regime democrático, com eleições, liberdades e direitos humanos.
As forças militares ocuparam pontos estratégicos em Lisboa e derrubaram a ditadura do Estado Novo, implantada também por militares em 1926.
Às primeiras horas da manhã, militares de vários ramos, ocuparam pontos estratégicos na capital portuguesa, com o objetivo de derrubar o regime do Estado Novo. Os sinais de código para dar o arranque das operações – canções de Paulo de Carvalho e Zeca Afonso – foram transmitidos através da rádio nas horas anteriores.
A zona dos ministérios, órgãos de comunicação e outros locais considerados sensíveis foram subjugados pelos militares sublevados.
A reação do regime foi lenta e ineficaz. O presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, refugiou-se no Quartel do Carmo, de onde saiu sob escolta militar do capitão Salgueiro Maia, em direção ao exílio. Nas horas seguintes foi criada a Junta de Salvação Nacional.
Além do capitão Salgueiro Maia, que comandou a coluna de blindados saída de Santarém, outros militares desempenharam papéis muito importantes na preparação do 25 de Abril. Otelo Saraiva de Carvalho foi o comandante operacional, quem dirigiu todas as operações a partir do quartel da Pontinha, junto de Lisboa.
O major Melo Antunes era no entanto quem tinha ideias mais claras sobre a necessidade de democratizar o país, sendo igualmente importantes nesse período histórico o capitão Vasco Lourenço e o major Vítor Alves.
Durante o dia, a população de Lisboa foi-se juntando aos militares e o que era inicialmente um golpe de Estado foi-se transformando numa verdadeira revolução, com a distribuição de cravos, cujos soldados os colocavam no cano da espingarda e os civis punham a flor ao peito. Daí a designação de Revolução dos Cravos.
Ao fim da tarde, Marcelo Caetano rendeu-se e entregou o poder ao general António Spínola. O primeiro presidente após na nova era democrática foi Costa Gomes.
Um ano depois, a 25 de Abril de 1975, os portugueses votaram pela primeira vez em liberdade desde há muitas décadas saindo vencedor o Partido Socialista (PS) liderado por Mário Soares e constituído por outras figuras influentes da sociedade portuguesa, nomeadamente, Salgado Zenha, Manuel Alegre, Almeida Santos, Lopes Cardoso, Igrejas Caeiro, entre outros.
Outro dos objetivos da Revolução dos Cravos foi acabar com a guerra colonial iniciada em 1961, em Angola, Moçambique e Guiné, as chamadas províncias ultramarinas (porque estavam para além do mar). Na altura o serviço militar obrigatório para jovens era de quatro anos, com os primeiros dois em Portugal Continental e outros dois no antigo Ultramar português. Durante os 13 anos em que durou a guerra, perderam a vida quase 9 mil e cerca de 30 mil ficaram feridos ou estropiados. Em 1973 Portugal tinha 150 mil homens a combater numa guerra que nunca poderia ser ganha pelos portugueses, uma vez que o seu combate era contra a própria História. Quase toda a África era já independente.

 

 

Como reagiu a comunidade de MA e RI à Revolução dos Cravos
Portuguese Times deu grande destaque e o seu direitor deslocou-se a Portugal

A comunidade portuguesa nos EUA e da Nova Inglaterra, em particular, inicialmente ficou sem saber o que tinha acontecido em Portugal, mas à medida que foram chegando notícias, através sobretudo das rádios locais a verdade é que muitos chegaram a celebrar o momento, embora, com o passar do tempo, e com Portugal a transformar-se num país dirigido por individualidades afetas ao Partido Comunista, gerou-se alguma apreensão e preocupação (consultar entrevista a Onésimo T. Almeida noutro local).
Portuguese Times noticiava em primeira página, na sua edição de 2 de maio: REVOLUÇÃO EM PORTUGAL, com uma foto do general António Spínola, em que poderia ler-se nos primeiros parágrafos: “O esforço de Portugal para conservar os seus territórios ultramarinos produziu uma constante e crescente desmoralização que afetou a estabilidade política e social do país, originando o golpe de Estado contra o governo do professor Marcello Caetano... Com a ajuda dum sol primaveril, e com o influxo de turistas, a vida na capital portuguesa parecia regressada à normalidade depois da tensão causada pelo falhado golpe militar de há um mês...”
Ainda na primeira página deste semanário, podia ler-se: “Na edição de hoje, PT leva ao conhecimento dos leitores um relato, tão pormenorizado quanto possível, dos factos que originaram a brusca transformação da vida portuguesa. Os nossos esforços, porém, não ficam por aqui. António Alberto Costa, diretor deste semanário, seguiu para Portugal, a fim de analisar, in locco, a situação, e descrever pormenorizadamente o que se passou e o que se está a passar em terras portuguesas”.
Na edição seguinte, de 9 de maio, Portuguese Times publicava um extenso apontamento sobre a histórica data chamando para título: PORTUGAL RENASCE: Milhares de portugueses desfilam pelas ruas celebrando a chegada da liberdade a Portugal. Palma Carlos, por deliberação da Junta de Salvação Nacional, era nomeado primeiro-ministro e onde se dava conta ainda da libertação de presos políticos.
Na sua coluna “Canhenho dum homem da rádio”, António Alberto Costa escrevia: “Portugal é livre! Deixámos Lisboa com várias impressões. A mais predominante é que Portugal passou a ser um país livre, sem censura nem polícia secreta...”

 

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50 Anos de ABRIL

• José F. Costa

 

Cinquenta anos depois, o 25 de Abril mantém muito do seu significado original - alguma coisa que era imperioso acontecer. É por isso que ainda hoje celebro a data; caso contrário, passaria distraído sobre este dia. Dada a minha situação pontual na altura (Era aspirante miliciano na EPA/Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas. Como comandante de pelotão, com os meus soldados, montei guarda ao exterior do quartel, enquanto outra coluna se dirigiu para Lisboa), o 25 de Abril chega-me todos os anos misturado de saudade de uma aventura muito séria vivida quando já ultrapassara os verdes anos da juventude; e, com a saudade, a nostalgia própria de quem terá, porventura, acordado dentro do seu próprio sonho.  Ainda hoje me dá para salivar com gosto a recordação de ter sido brevemente herói. (Aquela espera ansiosa pela transmissão de “Grândola”, vivida por mim e o meu colega de armas, na missão enervante de montar guarda ao comandante da unidade, que resolvera, como muitos outros, não alinhar com os revoltosos...)   E ainda me passam, na memória, tantos rostos que nos saudavam com abraços e beijos, visitas ao quartel, cravos (Como é que, das nossas mãos, inesperadamente nascem flores?!), maços de cigarros, canecas de vinho, pão alentejano... (E recordo o rosto, ainda menino, de um soldado que, logo de madrugada, me perguntou “Já não vamos para África... Acabou a guerra... Não é, meu aspirante?...). A esta imagem de festa, está associada, por vezes, uma certa inquietação porque sei que muito ficou por fazer, e muito se perdeu no meio de palavras de ordem sem tino ou propósito. Apesar de tudo, eu acredito que o 25 de Abril foi a grande oportunidade de Portugal decidir sobre o seu próprio futuro, sem imposições de fora ou pressões intestinas ditadas por elites, e colocar-se, com dignidade, no contexto europeu e mundial. 

Em tempo de festas, comemorações, medalhas e discursos, deixo aqui, o meu sinal de profundo respeito e admiração por todos aqueles que, pela madrugada dentro, perfilados nas paradas dos quarteis, responderam “Sim”, com o corpo e a alma, num passo em frente decisivo para o desencadear feliz da Revolução dos Cravos. E ficaram, e ainda por aí andam, mas por nomear, os milhares de soldados que, no anonimato, foram o nosso maior grito de guerra pela liberdade. Para eles, com quem tive a sorte de partilhar a alegria da nossa libertação, aqui deixo a minha homenagem:

 

Sentido!

Fiz-me soldado em Abril

Não me conheces, pois não?

As honras que me couberam

Nunca mais envelheceram:

Moram na alma, onde estão.

 

Gritei vivas. Bebi lágrimas

Na manhã de cravos mil.

Do cano das espingardas

Colhi flores, madrugadas: 

Fiz-me soldado de Abril.

 

Não matei p’la liberdade.

Outros morreram por mim...

Fiz-me soldado de Abril,

Herói com alma em perfil,

Sem estátua nem jardim.

 

Fiz-me soldado em Abril

Do ano da pura idade.

E fui praça, soldadinho.

Gritei às armas do sonho 

Pela tua liberdade.

 

Sou o nome de amanhã

Que em silêncio perfilado

Traz à história um sentido:

Porque eu, desconhecido,

Sou de Abril o teu soldado.

 

Cinquenta anos depois, o 25 de Abril é, para além de tudo, a recordação de uma festa que havemos de celebrar no tempo que passa.  Depois de tantas noites de insónia, valeu a pena ter os olhos ainda abertos para uma madrugada assim...

 

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Professor Rui Graça Feijó, da Universidade de Lisboa, ao PT:
“Esta conferência permitiu a todos aprofundar o conhecimento sobre a Revolução do 25 de Abril”

O professor Rui Graça Feijó, da Universidade Nova de Lisboa, um dos palestrantes no colóquio internacional da UMass Dartmouth sobre a Revolução dos Cravos, que reuniu entidades académicas do mundo lusófono dias 4, 5 e 6 de abril, sublinhou a importância do evento no âmbito de um conhecimento mais aprofundado da Revolução do 25 de Abril.
Licenciou-se em Coimbra (1978) e doutorou-se em Oxford (1984), tendo obtido em 2017 o título de Agregado em Democracia no Século XXI (Coimbra). Na última década tem-se dedicado a estudos sobre a Democracia, com trabalho empírico em Portugal e Timor-Leste. É membro do Centro de Estudos Sociais e do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.
Na sua intervenção, no sábado, 6 de abril, na UMass Dartmouth, falou sobre “Viajantes e Caminhos: Esfera Pública, Agência e Indeterminação na Revolução Portuguesa do 25 de Abril”, que cativou a atenção dos presentes pela clareza e leitura exata dos acontecimentos antes e depois desta data da História Contemporânea de Portugal.

• Entrevista: Francisco Resendes

PT - Que importância atribui a esta iniciativa levada a cabo pela Universidade de Massachusetts em Dartmouth?
Rui Graça Feijó - “Acho que é extremamente importante que se aproveite este ensejo de celebrarmos os 50 anos da Revolução do 25 de Abril, que marcou um virar de página muito significativo na História de Portugal e portanto tudo quanto seja para refletir sobre como isto aconteceu, o que trouxe de bom, quais os limites desta transformação, o que está agora nas nossas mãos fazer para que não seja necessário fazer outra revolução, mas que se possa, por meios pacíficos chegar a um melhor entendimento e interpretação da vontade do povo em geral é extremamente importante e este evento sem dúvida permitiu aprofundar o conhecimento sobre a Revolução Portuguesa dos Cravos”.

PT - Como interpreta o facto deste colóquio ser realizado na diáspora?
RGJ - “No que diz respeito à diáspora, o que constatamos é que cada vez mais participa na tomada de decisões em Portugal, hoje já pode votar nas eleições presidenciais, o que não acontecia nos primeiros anos, embora não tenhamos chegado ao ponto desejável, mas foi sem dúvida um salto gigante e a verdade é que nos últimos atos eleitorais tem-se registado um maior número de portugueses da diáspora a exercerem o seu direito de voto e faz todo o sentido que estas iniciativas de pensar o 25 de Abril sejam também realizadas na diáspora, embora haja ainda alguns aspetos a melhorar”.

PT - Cinquenta anos depois há quem na sociedade portuguesa não esteja satisfeito com o desenrolar dos acontecimentos e que os ideais e valores pretendidos do 25 de Abril não chegaram na sua plenitude e que se constata agora é o surgimento de movimentos extremistas da direita, não apenas em Portugal, mas também em países como Itália, França, Holanda, Argentina, etc...
RGF - “Vejo tudo isso com preocupação porque eu entendo que são propostas de solução profundamente erradas e devo referir que quem não conhece o passado está destinado a repetir os mesmos erros e é bom que conheçamos o passado... Onde é que acho haver uma causa para tudo isto? Se formos ver indicadores objetivos chegaremos à conclusão óbvia que temos um nível de vida muito superior do que há 50 anos, em todos os níveis: proteção social, saúde, educação, reforma e falo por experiência própria: fiz a escola primária antes do 25 de Abril numa aldeia a 50 quilómetros na cidade do Porto e eu era o único que usava sapatos todos os dias e hoje não há ninguém que vai para a escola sem sapatos e usufruem de outros direitos: têm refeições e mais anos de escolaridade: antigamente era apenas quatro anos e hoje são doze, naturalmente que houve uma evolução. 
Na União Europeia, a capacidade de escolher entre alternativas foi bastante limitada e hoje há modelos que são impostos e que os partidos tendem a ter menos diversidade e oferecer menos alternativas e acho que isto é negativo e quando não temos alternativas teremos de as criar e no caso da União Europeia há cada vez menos possibilidade de escolha, pelo que penso que a raíz do problema reside aí”.

 

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O dia que fez o meu pai voltar da guerra e deu um país melhor aos meus filhos

• Leonídio Paulo Ferreira*

Faço parte dos portugueses que nasceram antes do 25 de Abril, hoje menos de metade da população, mesmo que só tivesse dois anos e meio no momento da Revolução. Não tenho memórias daquele dia, mas sei o quanto foi importante para mim: primeiro que tudo, permitiu que o meu pai voltasse para casa, ele que dois anos antes tinha sido mandado para Moçambique combater; depois, permitiu que o meu país se tornasse melhor, não só livre como moderno, sem império mas mais próspero, com o contributo também de quem perdeu tudo na descolonização tardia e teve de refazer a vida. Temos todos a agradecer à Revolução de 1974, por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde, que tão dignamente se tem comportado nestas últimas décadas, com destaque para os tempos da pandemia, garantindo então que um doente - incluindo os estrangeiros que escolheram viver entre nós - quando entrava no hospital não tinha de se preocupar com o plafond do cartão de crédito, só em ser curado da covid-19.
Trabalho num jornal que já era bem antigo quando os Capitães de Abril, cansados da tal guerra do ultramar em que o meu pai e quase um milhão de outros jovens participaram, decidiram mudar o regime. E nesse dia, faz agora 50 anos, tivemos no Diário de Notícias uma segunda edição que é por si só um documento sobre a mudança no país - enquanto nas primeiras páginas se noticiava o movimento militar, lá dentro continuavam os vestígios da edição normal, com as inaugurações de Américo Thomaz e os discursos de Marcello Caetano. Eram páginas fechadas antes de se ouvir na rádio a canção ‘Grândola, Vila Morena’, a senha do MFA que foi passada no programa Limite, da Renascença, por Carlos Albino, de quem mais tarde fui camarada de redação.
Não escondo que o nosso jornal, fundado em 1864, foi dos mais vigiados pelo salazarismo e depois pelo marcelismo, talvez por logo a seguir ao golpe militar de 1926 ter-se destacado nas críticas à imposição da censura pelos dirigentes do futuro Estado Novo. Tudo isto faz parte da história do DN, tal como da história do país, e não deve ser renegado. Também no PREC houve projetos ideológicos que tentaram impor-se no jornal, com José Saramago a liderá-los, e não foi por isso que, recém-Nobel da Literatura, o escritor deixou de ser recebido com uma salva de palmas quando voltou em outubro de 1998 como visitante à redação onde trabalhara, ainda no edifício histórico na Avenida da Liberdade, coração de Lisboa. A liberdade é isto também: poder lidar com frontalidade com o passado.
Olhemos agora para o futuro, que se apresenta cheio de desafios, para o jornalismo, para a democracia, para o país. Por ocasião dos 40 anos do 25 de Abril, o DN fez uma exaustiva análise de como era o país antes e depois, e a conclusão foi a de uma impressionante melhoria a todos os níveis, com destaque para a saúde e a educação. E, no entanto, nesse 2014 até estávamos ainda sob assistência financeira, faltavam alguns meses para a saída da troika de cá. O que significa que devemos ser otimistas, pois desde 1974 têm sido construídas bases sólidas para o desenvolvimento, e a prova foi, insisto, a resposta dos nossos hospitais à covid-19, admirável tal como admirável, e é reconhecido lá fora, foi a gestão política da situação (e tanto estiveram de parabéns o governo como a oposição) e o comportamento cívico da população. Mesmo o estado de emergência foi gerido para nunca parecer estar a pôr em causa esta democracia que hoje festejamos. E felizmente a União Europeia conseguiu também mostrar vontade de reação à crise e dar valor à ideia de união.
Tenho dois filhos que gostam de história. Daniel de 23 anos e Mariana de 13, ambos estudantes na escola pública como também o pai foi. Desde pequenos sempre lhes falei com entusiasmo da história de Portugal, de como os descobrimentos deram ao país uma projeção única que sobrevive hoje através dos quase 300 milhões de falantes de português mundo fora. Sempre acharam curioso que quando o pai nasceu ainda houvesse um império e que os avôs (sim, também o do lado materno) tivessem sido soldados a milhares de quilómetros de casa. Mas, sobretudo, expliquei-lhes a sorte que tinham tido com a época em que nasceram e que a liberdade e as oportunidades de que desfrutam devem-se muito aos que naquela madrugada de 25 de abril de 1974 saíram dos quartéis para acabar com a ditadura.
Também lhes digo que a profissão do pai, como todas, é digna. E, além disso, essencial para a defesa da democracia em que gostamos de viver e que não é um dado adquirido em muitas partes do mundo. Viva o 25 de Abril.

 

*Texto adaptado de um editorial publicado a 25 de abril de 2000, quando era diretor interino do Diário de Notícias.

 

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O meu 25 de Abril


• Norberto Aguiar*

Considero-me um sentimental. 
Quem me conhece sabe que facilmente tenho a lágrima ao canto do olho. Mas sei que há pessoas que teem outra opinião a meu respeito. Algumas chegam mesmo a dizer que sou arrogante. Mas a essas, não dou muito crédito...
Esta introdução tem muito a ver com o que direi nos parágrafos seguintes.
Nasci em Santa Cruz da Lagoa, como sempre me disse a minha querida e saudosa mãe. Mas fui registado na freguesia do Rosário, por ter chegado ao então lugar do Cabouco – só adquiriu a sua independência do Rosário como freguesia em 1980 – como criança de colo. 
A razão disso ter acontecido baseou-se no facto da mãe da minha mãe ser natural da freguesia sede de concelho e minha mãe ser muito querida da sua avó, daí essa sua passagem por Santa Cruz durante alguns anos, mesmo que alternados, já que a família do meu avô paterno era toda do então lugar do Cabouco. 
O Cabouco, precisamente, na altura da minha infância e depois adolescência não devia ter mais do que 700/800 pessoas. Hoje anda à volta das 2 mil!... Não tinha luz e a água canalizada só foi concretizada para aí em fins dos anos sessenta... A igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, com as suas missas (poucas), festas e catequese servia de centro nevrálgico do aglomerado para toda aquela gente...
Lembro-me que a juventude do meu tempo se agarrava à minha bola como única forma de divertimento na aldeia. Os jogos eram entre ruas. Jogava-se no baldio onde hoje há uma carreira de casas no lado sul à entrada do Bairro Dona Amélia para quem vem do Rosário pela estrada a poente da agora freguesia; e de quando em vez recebíamos equipas do Rosário (do Porto dos Carneiros, da Rua da Fábrica, do Centro do Rosário, da Atalhada, do Bairro dos Pescadores...); de Santa Cruz, do Porto Formoso, do João Bom da Bretanha, entre outras...
O outro divertimento encontrado pelos jovens e menos jovens no Cabouco eram as conversas no adro da Igreja ao domingo depois da missa das 10h, que à noite era dia de «falar à janela com a(s) noiva(s)» e à noite no decorrer da semana. Quando não alguns jogos de sueca nas duas ou três tabernas ali existentes.
E é aqui que bate o ponto.
No adro da Igreja falava-se de tudo. Das potenciais noivas, aos resultados dos jogos do Benfica e Sporting, que do Porto, naquela altura, anos sessenta, ninguém se considerava. Do futebol regional, o Operário, por vezes o Santa Clara, também merecia tempo de conversa. Falava-se de cinema, sobretudo dos filmes de ação, vistos por muitos poucos, por falta de dinheiro e por haver a necessidade de rumar ao Rosário, à Casa do João Pedro, a três quilómetros de distância, a pé, muitos obrigados a caminhar descalços... Também era lugar que servia para arranjar trabalho entre os camponeses...
Mas nos serões passados no adro da Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, que começavam depois da ceia (jantar, para a maioria era o almoço, isto é, o repasto do meio-dia) e se prolongavam noite dentro, cuja única claridade era quando havia dias de Lua cheia, do que mais me metia medo era quando se falava na Guerra em África. 
No Cabouco, que me lembro, a cada incorporação de novos mancebos, uma grande parte deles seguia para Angola, Moçambique ou Guiné. Eu próprio tive um tio (Manuel Marques, por sinal o nome de meu avô, seu pai) em Moçambique, um primo (Gilberto Marques Correia, hoje vive em Providence, Rhode Island), em Angola, e um compadre (Alberto Soares, que vive em Ontário, Canadá) na Guiné. 
Dos soldados caboucoenses que regressavam do Ultramar, onde felizmente ninguém morreu nos 13 anos que durou a guerra, era ouvir as suas histórias. Umas bem contadas e outras não, certamente. 
Como adolescente, eu «comia» todas aquelas palavras como sendo verdades. Matar turras desta e daquela maneiras, quando não dar «cronhadas» nos turras em sanzalas; e atrevessar rios cheios de crocodilos e outras espécies selvagens, como as cobras, etc... eram moeda corrente. Tudo isso me amedrontava por pensar que o meu dia de demandar a África chegaria e que eu, que nem num gato ou cão era capaz de tocar, como iria ter coragem de matar meus semelhantes?...
Posso dizer que vivia amargurado só em saber que o meu destino (mais que certo) seria malhar comigo na tropa e, depois, desandar para um terreno desconhecido e muito minado, como ouvia dizer aos meus conterrâneos. Morrer, era medonho, mas ficar estropiado ainda me causava mais temor. E poder lidar com cobras e crocodilos também me deixava estarrecido de medo. 
Foi assim, muito preocupado que vi meu pai partir para o Canadá sem me poder levar. Ele bem tentou. Porém, sem sucesso.
Mais tarde, como segunda vaga, foi minha mãe que deixou a ilha com a minha irmã Mariana (casou e vive em Bristol, Rhode Island) e meu irmão Luís (vive na Colúmbia Britânica, onde leciona), e eu voltei a ficar, pois incorporar o serviço militar traçara-me desde há muito o destino.
E vem a Revolução!
Desde logo, soube-se que a Guerra no Ultramar ia acabar. Essa permissa deixou, naturalmente, todos os rapazes da minha idade felizes, pois a partir dali podiam, de certa maneira, considerar-se livres. Pelo menos da guerra. 
E foi o que aconteceu, mesmo se alguns ainda embarcaram com destino ao Ultramar por algumas semanas, ou meses. Mas o sentimento já era outro. E o regresso não demorou, pondo ponto final numa situação de difícil compreensão, já que todos sabiam que Portugal não podia, nem devia continuar a ocupar aqueles territórios africanos quando todos os outros países colonialistas já há anos que tinham dado as respetivas independências.
Com a decisão de Vasco Gonçalves permitir que os mancebos com famílias no estrangeiro pudessem deixar o país por um período de três meses, aproveitei a deixa e voei para Montreal, para junto da família, isto apesar de outros considerandos que ficam para contar noutra ocasião. 
Já em Montreal e não tendo 21 anos, que era a idade da maioridade, na Imigração canadiana fui considerado apto para ficar no país, sob a responsabilidade de meus pais. 
Isso obrigou a que ficasse como refratário perante as endidades portuguesas, sobretudo porque eu estava em ano de ingressar no Serviço Militar e só tinha recebido, não se esqueçam, autorização de 3 meses para me ausentar... Esta situação foi regularizada mais tarde, obedecendo a amnistias governamentais.
Foi assim que deixei para trás o meu emprego (no Varela) e a minha carreira de jogador no Clube Operário Desportivo, que era a minha grande paixão.
Casei e tive três filhas numa situação também algo recambolesca. Podia dar um filme ou um romance! Sobre isso, talvez haja possibilidade de escrever noutra ocasião.
Ah, e depois de sete anos no Canadá, regressei à terra, que sempre foi o meu sonho. Mas só deu para «aguentar» na ilha sete meses... Outro capítulo com muito para contar.
Já à pergunta «Que memórias guardas do 25 de Abril?», que me fez o diretor do Portuguese Times para dar corpo a este texto, eu direi que o Dia 25 de Abril foi um dos dias mais felizes de toda a minha vida por todas as razões evocadas na leitura desta peça.
Mas, caros leitores do Portuguese Times, o 25 de Abril, ainda hoje, continua, passados 50 anos, a dar-me uma felicidade desmedida, que se reflete no facto de ter podido excercer no Canadá a profissão de jornalista, outro dos meus sonhos de criança!
Com efeito e a concluir, diria que sem a gloriosa jornada do 25 de Abril de 1974 não me teria sido possível, de certeza, dar educação universitária a três filhas, ter assegurado a minha independência financeira, adquirido o uso de outras línguas, contactado com muita gente de outras origens, ter lidado com personalidades dos mais variados quadrantes da sociedade, viajado algures e, mais do que tudo, ter tido a grata possibilidade de excercer como modo de vida esta maravilhosa profissão que dá pelo vocábulo de jornalista!

 

*Proprietário do jornal LusoPresse e do programa de televisão LusaQ TV, em Montreal, Canadá.