
Amanhã, 23 de novembro, é Thanksgiving Day nos Estados Unidos, data em que os norte-americanos agradecem as “graças” recebidas ao longo do ano que está quase chegando ao fim e as famílias confraternizam numa refeição de peru.
É o feriado que abre o ciclo festivo do Natal e do Ano Novo e que muitas organizações assinalam com iniciativas de caridade para os menos afortunados, nomeadamente oferecendo a refeição tradicional, como faz há vários anos a Sociedade Cultural Açoriana de Fall River, que o Thanksgiving é também celebrado pelos imigrantes portugueses e não só.
No emanharado de raças e culturas que vivem nos Estados Unidos e Canadá, o Thanksgiving ganhou o seu lugar no coração dos imigrantes por lembrar o poder da gratidão, da amizade e da união.
No fundo, o Thanksgiving é uma celebração das colheitas igual a tantas outras. Os antigos gregos faziam uma celebração de três dias semelhante ao Thanksgiving para reverenciar Deméter, deusa do trigo e dos cereais. Os romanos também faziam celebração parecida, na qual reverenciavam Ceres, deusa do trigo (a palavra cereal deriva de Ceres). Os chineses faziam igualmente uma festa de colheita chamada Chung Ch’ui, em que as famílias comiam bolos redondos e amarelos chamados “bolos de lua”. Os judeus também realizavam uma festa chamada Sukkoth que se prolongava por oito dias. Os antigos egípcios tinham igualmente uma festa das colheitas que reverenciava Min, o deus da vegetação e da fertilidade. Nas Ilhas Britânicas, a precursora do Thanksgiving foi uma festa de colheita chamada Lammas Day (Dia de Lammas). O nome é uma mistura das palavras loaf (pão) e mass (massa) no inglês antigo e no Lammas Day as pessoas vão à igreja com um pedaço de pão feito com o trigo da primeira colheita.
Todas estas influências contribuem para o atual Thanksgiving na América do Norte.
No Canadá, o Thanksgiving foi celebrado pela primeira vez em 1879 e está ligado às tradições de festejar as colheitas. Como o Canadá está mais ao norte do que os Estados Unidos e as colheitas são feitas antes, o Thanksgiving também é celebrado antes, na segunda segunda-feira de outubro e este ano teve lugar no dia 9 de outubro.
Nos Estados Unidos a data cai este ano a 23 de novembro, mas o ano passado foi a 24 de novembro e em 2024 será a 28 de novembro. Portanto é mais fácil lembrar assim: nos Estados Unidos o Thanksgiving é sempre na quarta quinta-feira de novembro, o mais tarde que pode ocorrer é no dia 28 de novembro e o mais cedo no dia 22.
Em 1817, quando o estado de New York declarou Thanksgiving feriado e outros estados seguiram o exemplo, uns celebravam em novembro e outros em dezembro, e os estados sulistas nem sequer reconheciam o festejo.
Embora já fosse celebrado há mais de dois séculos, o Thanksgiving só foi declarado feriado nacional depois da Guerra Civil, em 1863, por Abraham Lincoln, que proclamou que seria no último dia de novembro pedindo a todos os americanos que pedissem a Deus que “recomende ao seu terno cuidado todos aqueles que se tornaram viúvas, órfãos, enlutados ou sofredores na lamentável contenda civil”.
Em 1939, o presidente Franklin Roosevelt mudou a data do Thanksgiving para uma data anterior a fim de satisfazer os comerciantes, que queriam uma época de compras de Natal mais alargada e finalmente, em 1941, decretou que fosse celebrado na quarta quinta-feira de novembro.
Interessante notar que, diferentemente da maioria dos feriados, o Thanksgiving está relacionado com a história dos Estados Unidos e a sua colonização e tem o mérito de não estar ligado a nenhuma religião específica e as pessoas poderem celebrá-lo da maneira que quiserem.
Em geral, pensa-se que o Thanksgiving é comemorado apenas na América do Norte, mas a Alemanha também celebra o seu dia de ação de graças no primeiro domingo de outubro. No Japão celebra-se a 23 de novembro. Na Libéria, país criado em 1821 pelos americanos para enviar antigos escravos que desejavam voltar a África, é celebrado no início de novembro e em Granada e Santa Lúcia, dois países caribenhos, no dia 25 de outubro.
Pouca gente sabe, mas o Thanksgiving foi também instituído no Brasil a 17 de agosto de 1949 pelo presidente Eurico Gaspar Dutra e é assinalado na quarta quinta-feira de novembro, mas apenas por famílias de origem americana e instituições americanas.
O Thanksgiving não chegou a Portugal, mas já lá está a Black Friday, a campanha comercial utilizada pelo comércio norte-americano na sexta-feira seguinte para alavancar as vendas. Já agora, lembre-se que o Thanksgiving americano começou há 402 anos, é uma das muitas tradições de celebração e agradecimento pelas colheitas existentes em todo o mundo e há conhecimento de uma celebração anterior na Virgínia, em 1619, levada a cabo em Jamestown, a primeira colónia inglesa na América fundada em 1607 por colonos que desembarcaram em Berkeley Hundred do veleiro Margaret.
A origem do Thanksgiving não é totalmente conhecida, mas a versão aceite historicamente remonta a 1620, quando 102 colonos ingleses chegaram ao território que é agora conhecido como o estado de Massachusetts, após uma terrível viagem de 66 dias a bordo do veleiro Mayflower.
Esses pioneiros eram conhecidos por Puritanos, faziam parte de um grupo religioso protestante que tinha começado a questionar as crenças da Igreja Anglicana e queria separar-se dela. Vieram para a América fugindo a perseguições religiosas e, tempos depois, perseguiam eles os colonos que tinham diferentes crenças.
Os Puritanos aportaram a 11 de novembro de 1620 e fundaram um povoado chamado Plymouth Colony, que entraria para a história como a segunda colónia inglesa estabelecida nos EUA. Mas o primeiro inverno dos ingleses em Massachusetts foi difícil, foram surpreendidos pela dureza do clima que os obrigou a permanecer no navio devido ao frio e a contas com doenças. Mais de metade morreu de frio e fome no primeiro inverno e os sobreviventes estariam condenados a morrer nos invernos seguintes se, em março de 1621, não tivessem recebido a surpreendente visita de um indígena chamado Samoset, que os saudou em inglês, já que tinha sido levado como escravo para Inglaterra e aprendera a língua, mas conseguira fugir e voltar.
Dias depois, Samoset voltou com outro índio, chamado Squanto, que também falava inglês (ao que parece aprendera com outros exploradores ingleses) e os dois índios ensinaram os colonos como plantar milho e outros cultivos próprios para o solo desconhecido, além de como caçar e pescar e isso possibilitou-lhes a sobrevivência naquele novo mundo hostil.
No verão de 1621, foram colhidas fartas safras de milho, cevada, feijões e abóboras e, para comemorar o sucesso da colheita, o governador da colónia, William Bradford, organizou três dias de festa com abundante comida e convidou os índios da região para a festa que foi considerada o “primeiro Thanksgiving”, segundo o cronista dos Puritanos, o colono Edward Winslow. A data exata é desconhecida mas “o evento deve ter acontecido entre 21 de setembro e 11 de novembro, com o dia mais provável sendo 29 de setembro”.
“Realizada a nossa colheita, o nosso governador enviou quatro homens à caça de aves, para que, juntos, de maneira especial, pudéssemos nos alegrar, depois de colhermos os frutos do nosso trabalho”, escreveu Winslow. “Em apenas um dia, os quatro mataram tantas aves que a companhia se alimentou por quase uma semana. Nesses dias, exercitámos as nossas armas, ao lado dos índios e do chefe da sua tribo, Massasoit, que tem cerca de 90 homens. Durante três dias, festejámos, e eles saíram e mataram cinco veados, que trouxeram para a fazenda e entregaram ao nosso governador e ao capitão”.
O banquete foi preparado por quatro mulheres vindas no Mayflower (Eleanor Billington, Elizabeth Hopkins, Mary Brewster e Susana White), ajudadas pelas filhas e serviçais. A festa teve a participação de 50 colonos e foram convidados os chefe indígenas locais e mais 90 índios.
Historiadores sugerem que as receitas provavelmente foram preparadas seguindo os hábitos dos indígenas, com os seus temperos e os seus métodos. Como, na época, os colonos não tinham forno, o banquete não teve tortas, bolos e outras sobremesas, que só se tornariam tradicionais do Thanksgiving muitos anos depois.
Ainda segundo relatos, um segundo Thanksgiving teve lugar em 1623, para agradecer o final de uma longa seca que havia ameaçado a colheita daquele ano. A partir de então, banquetes religiosos anuais de agradecimento tornaram-se tradição em outras colónias na região da Nova Inglaterra.
Resolvido o problema da sobrevivência no inverno, a colonização foi um sucesso, mais puritanos foram chegando e outros assentamentos surgiram rapidamente: Weymouth, 1622; Dover e Gloucester, 1623; Chelsea, 1624; Salem, 1626 e Boston, 1630. Em 1640, Plymouth tinha 2.500 habitantes e decorridos 190 anos já eram 7.093, o pequeno burgo prosperou com a construção naval e a pesca. E o Thanksgiving foi entrando nos hábitos dos americanos, primeiramente como celebração religiosa, depois como tradição civil, mas quem deixou de aderir foram os índios.
Não tardou muito para que as relações dos colonos com os índios ficassem estremecidas, com os ingleses apoderando-se das terras dos nativos e isso culminou na Guerra do Rei Philip, como Metacomet era conhecido pelos ingleses. Metacomet, também conhecido como Pometacom e Metacom, era o filho de Massasoit e novo líder dos Wampanoag.
A Guerra do Rei Philip travou-se em 1675 e 1676 e foi uma das mais sangrentas da colonização dos Estados Unidos, em que morreram 3.000 nativos e 600 colonos. Metacomet foi morto a tiro a 12 de agosto de 1676 em Bristol, RI, onde dá hoje o nome à principal avenida (Metacom Avenue). Os Puritanos fizeram um novo banquete de Thanksgiving para comemorar a vitória e durante o qual a cabeça de Metacomet foi trazida espetada numa lança e permaneceu em exposição na colónia de Plymouth durante 25 anos.
Há sempre dois lados de uma história e, infelizmente, no caso do Thanksgiving, a história foi contada na perspetiva dos colonialistas ingleses que desembarcaram em Massachusetts em 1620, mas o relacionamento que começou por ser pacífico e amigável da parte dos Wampanoag, tornou-se violento quando os ingleses se apoderaram das terras dos indígenas.
Em 1620, os índios Wampanoag valeram aos primeiros colonos ensinando-os a sobreviverem ao rigoroso inverno da região. Metade dos 102 colonos que tinham chegado no Mayflower já tinha morrido e sem ajuda dos índios a sobrevivência dos restantes 53 colonos teria sido quase impossível. Contudo, o pagamento dos colonos foi matar os indígenas. Em 1970, alguns índios Wampanoag começaram a realizar o Day of Mourning (Dia de Luto) no dia de Thanksgiving em Plymouth, para lembrar a violência e a discriminação sofridas pelos seus ancestrais.
Hoje em dia, muitos índios consideram que o Thanksgiving é uma lembrança do massacre de milhões de povos indígenas e do roubo das suas terras pelos colonos. A organização Índios Americanos Unidos da Nova Inglaterra declarou o Thanksgiving como Dia Nacional de Luto e a data é para lembrar as dificuldades e o genocídio dos seus ancestrais.
No Thanksgiving Day há sempre uns quantos índios que se reúnem no Cole’s Hill, em Plymouth, para um comício lembrando “o genocídio de milhões de povos nativos, do roubo de terras indígenas e do ataque implacável à cultura nativa (...) e em um protesto contra o racismo e a opressão que os nativos americanos continuam a experimentar”.
Em 1988, uma cerimónia diferente aconteceu na Catedral de St. John the Divine. Mais de quatro mil pessoas, representantes de todas as tribos índias dos Estados Unidos e descendentes de imigrantes que vieram para o Novo Mundo, reuniram-se num reconhecimento público do papel fundamental dos índios no primeiro Thanksgiving. Sem os índios, os primeiros colonos não teriam sobrevivido.
Há 402 anos, a Nação Wampanoag eram 69 tribos e hoje são apenas três, uma delas os Mashpee Wampanoag, descendentes dos nativos que acolheram os Puritanos.
Presentemente, os Estados Unidos têm 2,6 milhões de índios, sendo caso para perguntar quantos índios morreram na colonização da América? Segundo pesquisas da University College London, a colonização exterminou quase 90% da população num século, ou seja, cerca de 56 milhões de indígenas. Quando os Puritanos desembarcaram do Mayflower, em 1620, os índios eram 25 milhões e poucos sobreviveram à colonização. Repetiu-se na América do Norte o que aconteceu no Brasil.
Quando os portugueses desembarcaram a primeira vez na costa da Bahia, em 1500, havia 3 milhões de índios espalhados em 900 tribos pelas terras brasileiras; falavam mais de mil línguas, eram tribos pacíficas, com exceção de uma tribo guerreira. Depois de 500 anos de exploração de culturas ditas civilizadas, sobram menos de 270 mil índios.
