Narrativas Silenciadas: a Revolução dos Cravos e a resistência à celebração na Califórnia

 

Portugal não seria o mesmo país sem o 25 de abril.  A Revolução dos Cravos, libertou-nos de um regime que governava com a opressão, a guerra, a pobreza e o medo. Os Açores e a Madeira, certamente que não seriam as mesmas regiões que são, apesar de estarem longe, muito longe da autonomia que se deseja e das oportunidades que ambos os arquipélagos podiam oferecer aos seus cidadãos, seriamos muito diferentes sem o 25 de abril. Na diáspora, particularmente na diáspora açoriana, também seriamos diferentes sem a Revolução e sem o Movimento das Forças Armadas.  Daí que me pesa ver a timidez que a diáspora tem tido para com a celebração do 25 de abril. O que temos visto, ao longo dos primeiros 4 meses deste ano, na diáspora portuguesa da Califórnia (e um pouco por todos os estados) é um abandono total da efeméride, em detrimento da habitual festa, repetida todos os anos com as mesmas “tradições” e sem qualquer referência a um dos momentos mais cruciais e mais importantes para a história portuguesa no século XX. Fico triste ao ver o momento ficar despercebido por alguns, abafado por outros, desrespeitado e vivido demagogicamente: refiro-me a neofascistas com cravos ao peito.  Acima de tudo, preocupa-me que passem essa imagem aos seus filhos e netos. Porque é que têm medo do 25 de abril? Porque é que não querem entender a Revolução dos Cravos?

Tinha 15 anos quando aconteceu o 25 de Abril. Estava no segundo ano da escola secundária e antes e depois das aulas, ordenhava vacas com o meu pai. Tinha acabado, há um ano e meio, de regressar das férias da minha vida: 4 meses na ilha Terceira. A memória estava ainda fresca com as recordações da ilha.  Estava a ultrapassar um período, que então considerava difícil. É que vivia, verdadeiramente, entre dois mundos, sem saber conjugá-los. Num, o mundo dos meus pais, o mundo açoriano, o mesmo mundo dos meus colegas e amigos que como eu também tinham emigrado dos Açores para o vastíssimo vale de São Joaquim. No outro, o mundo dos meus colegas e amigos da escola, todos eles muito americanos, ou porque já eram luso-americanos de segunda ou terceira geração ou porque eram de outros grupos étnicos. Recordo-me, que vivia esta dualidade de dois países, duas línguas e duas culturas com muita ambiguidade.  Em Portugal, na antiga quarta classe, tinha aprendido que éramos um império e que a nossa “raça” era superior. Aqui ninguém conhecia Portugal. Nas escolas públicas americanas nem uma palavra sobre esse “grande império”. Aliás, nada se ouvia, nada se lia, nada se via sobre Portugal.  Até que aconteceu o 25 de Abril de 1974.

A partir de então tudo mudou! De repente, Portugal é notícia nos órgãos da comunicação social americana. De repente, fala-se, durante largos tempos, sobre Portugal. São as notícias sobre uma revolução romântica, sobre a utopia de se construir uma sociedade verdadeiramente justa. Até na nossa rádio portuguesa local há uma transformação (eu que era desde que cá cheguei com 10 anos, um assíduo ouvinte da rádio em língua portuguesa e da qual fiz pate entre os 17 e os 33 anos).  Essa mudança teve relevância no programa de rádio da minha amiga Lúcia Noia, que mudou de nome e de formato. Acabara-se o Sol de Portugal e começara o Portugal Novo. Numa comunidade, infelizmente, bastante retrograda ela pagou caro por essa mudança. E tal como em Portugal começou-se a ouvir, pelo menos no programa da Lúcia e de mais um ou outro locutor, poucos, algumas músicas diferentes, como Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho, Paulo de Carvalho, entre outros. A minha perceção de Portugal, transformou-se.  

Os meus amigos americanos (mesmo aqueles que eram de ascendência portuguesa) começaram a falar-me de Portugal. Que viam o meu país de origem em festa, que a democracia tinha chegado a Portugal, que Portugal tinha tido uma revolução, que Portugal ia ficar socialista, que a América ia salvar Portugal, ou que Portugal era um caso perdido, como o afirmara o reacionário Henry Kissinger. Enfim, as mais variadas frases e opiniões, algumas mesmo absurdas, mas o que é certo é que falavam de Portugal. Por outro lado, quando ia às festas portuguesas, os meus amigos que como eu tinham emigrado dos Açores, nada diziam. Era como se nada tivesse acontecido no nosso país. A minha euforia ficava circunscrita ao que via, lia e ouvia na comunicação social americana e em alguns jornais portugueses que me chegavam às mãos com semanas, alguns com meses, de atraso. No mundo americano falava-se de Portugal, na comunidade, para além do que ouvia da voz corajosa e descomplexada de Lúcia Noia, Joaquim Morisson e mais um ou outro locutor, a Revolução por vezes tinha menos importância e dava menos que falar no adro da igreja, ou na festa comunitária, do que uma tarde de touros ou um bailinho de Carnaval divertido, que ocorrera lá na ilha.

Hoje, no ano de 2024, ao celebrarmos o cinquentenário da Revolução dos Cravos, o silêncio comunitário sobre a efeméride é assustador. É que há 25 anos, em 1999, ainda se realizava o simpósio literário Filamentos da Herança Atlântica, e nesse ano o simpósio foi dedicado às bodas de prata da revolução portuguesa. E a pequena cidade de Tulare foi palco de uma das mais interessantes comemorações do 25 de Abril em todo o mundo. Celebrou-se com colóquios, sessões de poesia, lançamentos de livros, exposição de artista plástico açoriano, simpósio juvenil, música e festa popular. Cá estiveram nomes consagrados de abril como o Major de Abril (agora tenente-coronel) Victor Alves, os cantores e artistas de abril: Manuel Freire, Carlos Alberto Moniz, Zeca Medeiros, entre outros.  

Cinquenta anos mais tarde, o mesmo silêncio que ouvi, aos meus quinze anos, é, infelizmente repetido. Há uma amnésia total quanto a esta efeméride. Se não fossem algumas celebrações em duas ou três universidades; se não fosse este ou aquele órgão da comunicação social, particularmente os jornais; se não fosse o que alguns colegas do ensino, particularmente os dos cursos de língua e cultura portuguesas fizeram (e espero que continuem) nas aulas, quer no ensino secundário quer no superior (e infelizmente cada vez menos colegas o fazem), o 25 de abril, e particularmente este cinquentenário tinha ficado completamente esquecido na Califórnia. Ou então tinha ficado para meia dúzia de escolhidos, de cravo ao peito e com ideias que contradizem todos os valores de abril. Alguns dirão que o que fizemos no ensino foi pouco. Concordo! Poderíamos ter feito mais. Da minha parte fiz o que pude. Porém o que se fez a nível comunitário foi vergonhoso.  Há um medo de celebrar abril que nunca compreendi, e jamais compreenderei, particularmente no baluarte das democracias e num dos estados mais progressistas da união americana.  Celebrar a Revolução dos Cravos, não significa apenas uma sessão no 25 de Abril, embora essa sessão tivesse faltado. Mas pode-se e deve-se celebrar abril nos nossos bodos de leite, no nosso Carnaval, nos nossos desfiles, nas nossas festas populares. Aliás, estipulou-se um plano para tal celebração, em tudo o que é português ao longo de 2024, produto de um congresso realizado em setembro do ano passado sobre o tema.  Porém, e por enquanto, nada foi feito, nem tão pouco a nível oficial, no que concerne aos representantes do nosso país, que se pensam donos da cultura. É que o 25 de abril é do povo, e há que o levar a quem não o conhece.  Talvez o interesse ainda desperte, porque, como sabemos estaremos a celebrar os cinquenta anos da Revolução mais fixe do século XX, como assim a apelidou a NBC News, até abril de 2025. Acho, que apesar de tudo há ainda na nossa diáspora de origem portuguesa na Califórnia, quem jamais queira entender que o 25 de Abril veio, em parte, para que passássemos além dos famosos três F’s do velho e arcaico regime: Fado, Fátima e Futebol. Como é que ainda cantamos ou achamos piada à “alegria da pobreza” do fado “Uma Casa Portuguesa.”  

Relembro, uma situação que, apesar de caricata, aconteceu, e até pode ser vista como os sinais dos tempos, cada vez mais tenebrosos para as democracias e para o branqueamento de um regime que não trouxe anda de bom para os portugueses. Como referenciei, os 25 anos do 25 de abril foram celebrados com grande dignidade na cidade de Tulare. Até cravos vermelhos tínhamos para cada casal que assistisse ao banquete comemorativo.  Cinco anos mais tarde, já sem simpósio, continuava-se a celebrar a parte popular do acontecimento. Convidaram-me para fazer o discurso da noite. Fi-lo com muito gosto e falei um pouco dos 30 anos do 25 de abril. Pedi a um amigo meu, que ainda estava na organização da festa popular, o favor de relembrar à comissão que estávamos a celebrar os 30 anos de abril e que talvez fosse simpático, e até mesmo interessante, ter-se um cravinho vermelho para cada casal que lá estivesse.  Disse-me que sim e que a comissão tinha concordado.  Para meu espanto, e também do meu amigo, os cravos eram brancos. Quando perguntámos se não havia cravos vermelhos disseram-nos, claro que havia, mas não dizia com a decoração.  Salvou-se o cravo, não se salvou a cor.  Um dia destes até poderá haver quem mude a cor da bandeira do Espírito Santo para dizer com o vestido da rainha. Felizmente, e graças à fundação das cidades irmãs, Tulare-Angra do Heroísmo, houve cravos vermelhos neste cinquentenário no centro da Califórnia.  

Ainda vamos a tempo de enaltecer a importância das narrativas de abril.  Já que as celebrações do quingentenário em Portugal (as oficiais) não quiseram incluir a diáspora, ainda podemos, ao longo dos próximos 11 meses, nos nossos espaços festivos celebrar condignamente a Revolução dos Cravos e os Valores de Abril. Os nossos filhos e netos merecem conhecer este momento histórico e único na história das terras dos seus antepassados. Não lhes roubemos essa oportunidade.