Às claras escondidas - Spínola regressa de novo

 

Um dos nossos diários noticia hoje que António de Spínola foi condecorado pelo Presidente da República com a Ordem da Liberdade, mas sem que nunca de tal acontecimento nos tenha chegado notícia anterior, muito menos oficial. Ao que percebi, um ato praticado no domínio dos membros da histórica Junta de Salvação Nacional, embora me tenha surgido esta dúvida: qual delas e quais dos seus membros? E escrevo isto, porque o referido órgão foi mudando de estrutura, à medida que se sucediam os minigolpes, com a finalidade de orientar, politicamente, o rumo dos acontecimentos do tempo. Por exemplo: Narciso Mendes Dias está entre os agraciados? E quem diz este general, diz muitos outros oficiais-generais.
Como se compreende, a notícia centra-se ao redor de António de Spínola, que acabou por realizar uma inenarrável travessia política desde que se determinou a escrever sobre teorias do impossível. Um facto que levou Marcelo Caetano, já no Brasil, a indicar-lhe que bem poderia limpar as mãos à parede, por via da trajetória que operou por esses anos. Fruto de uma fantástica sorte, a verdade é que acabou por não se ver atingido por algo de parecido com o que sucedeu a Humberto Delgado. Um sortudo...
Este conjunto muito vasto das vicissitudes vaidosas de Spínola nunca foi completamente tratado. Escreveu-se, é verdade, sobre aspetos diversos da sua ação, mas nunca uma visão ampla do que foi a sua trajetória militar, e, já na sua parte final, político-militar. Raros terão escrito sobre a sua movimentação, por razões militares, durante a II Guerra Mundial. E apenas Adelino da Palma Carlos nos forneceu o quadro negríssimo da sua ação em torno dos acontecimentos do 28 de Setembro, saldada numa verdadeira demonstração da sua cabal incapacidade para o exercício de um cargo político, e logo ao mais alto nível.
De igual modo, raros terão escalpelizado, de modo cabal, a completa inutilidade e o total falhanço do modelo que preconizara no seu PORTUGAL E O FUTURO. Hoje, quando leio o que escreveu neste seu livro – foi ele, ou alguém por ele? –, percebo a completa incapacidade para medir as consequências de uma ideia que era completamente inexequível. Mais: ele teve a ousadia de pensar que um militar se encontrava em condições de enfrentar um problema muitíssimo complexo, para mais enredado nos grandes interesses internacionais, que nos haviam menosprezado (quase) sempre, com a notável exceção de Salazar. Um tema sobre que convém ter presentes os dois doutoramentos honoris causa e as condições da sua atribuição, realidade muitíssimo pouco conhecida e menos ponderada.
Também quase se não escreveu sobre uma certa iniciativa de paz na Guiné, por via da qual acabaram por ser assassinados, desarmados, seis oficiais portugueses que se haviam deslocado por bem ao local em que vieram a perecer. É um tema sobre que quase se não escreveu, salvo mui curtas passagens de jornal, dado que, bem para lá de Spínola, acabaria por se colocar em causa a moral das forças políticas guineenses que o assassinaram. Faz lembrar o atentado de Camarate, com o manto de silêncio que caiu sobre o livro de Alexandre Patrício Gouveia.
Por fim, a duplicidade de critérios com que se tratou Costa Martins, que não foi integrado até ao último dia de funcionamento do Conselho da Revolução, à luz do princípio de que um militar não foge do seu país, mas para logo se proceder em contrário, para mais com a sua promoção ao posto de marechal, como era então designado, com António de Spínola. A verdade é que este, sem razão, também fugiu de Portugal – Carlos Galvão de Melo, por exemplo, não foi por aí –, mas fazendo a tristíssima figura que pôde ver-se, sendo que sobre o tema se escreveu muito pouco e de modo assaz sincopado.
O menos importante, infelizmente, foi o que serviu para o barulho que agora voltou a surgir, e que foi a sua liderança política do MDLP. O problema está em que os que agora apontam o que fez o MDLP tudo fazem para lavar as FP 25. E sobre este tema, bom, escreveu-se e noticiou-se sem parança. A verdade é esta e que deve ser bem sublinhada: António de Spínola não merece a atenção que se lhe está a dar, porque a sua obra, desde aquele seu atrevimento do PORTUGAL E O FUTURO, foi uma objetiva lástima. Mas temos espaço para um trabalho de fundo sobre a sua vida de militar, incluindo as baboseiras da sua intervenção política.
Por fim, uma notinha, ao redor desta notícia de hoje: como se vê, temos a democracia, com toda a sua cabal transparência...