Mar e Tudo e Outros Casos - Uma leitura dos contos do José Costa

 

Mar e Tudo e Outros Casos de José Francisco Costa, com admirável prefácio de António Rego, foi publicado na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, no final do ano passado. Trata-se da reedição de Mar e Tudo, nove contos publicados em 1998, a que o autor acrescentou agora mais quatro. Só há pouco tempo me chegou às mãos um exemplar do livro, mercê da apresentação que a Livraria Solmar promoveu recentemente, com intervenções várias e belas canções de teor regionalista, acompanhadas à viola.
Uma sucessão de contos, que o atual título denomina “casos”, oportuna reabilitação duma conotação antiga, hoje quase esquecida, faz desfilar um rosário de histórias, com o mar sempre presente e a aspereza de vida das gentes das Capelas. Os casos, todos mais ou menos com a mesma extensão, são alguns deles construídos com outros mais pequenos, que sobrepõem tempos e lugares, num bem gizado ir e vir entre a Ilha e as terras d’América. O volume mostra por isso equilíbrio e cadência, na forma como partilha com o leitor os altos e baixos de um povo que vive entre a descrença num futuro que a Ilha lhe recusa, a esperança num desconhecido longínquo e a angústia da saudade que o faz permanecer sempre preso à terra, ao mar e à gente do lugar de origem.
As nove histórias da primeira parte são «cantigas da memória», que entoam cavaqueiras, confidências, desabafos, sempre caldeados em sons, cheiros, maresias, chuviscos e ventanias. Ao ritmo próprio dum novenário, o livro é um convite para, dia após dia, ao cair da tarde, ler e meditar, com recolhimento e fascínio, os anseios e os desalentos, as alegrias e as agruras, as esperanças e as frustrações que marcam o moirejar do povo de «uma terra plantada em pátria nenhuma», mas que se deixa guiar pela aventura dos sonhos.

Mar e Tudo e Outros Casos traz à leitura a atmosfera do homem insular, circunspecto e taciturno, a cismar «sobre calhaus e musgos», frente ao mar, com o olhar num horizonte «que vai para lá da marca do chicharro». Decidir partir e deixar para trás a vida que o mantinha sempre «rente ao chão» é levar consigo a dívida dessa ousadia, que há de agrilhoá-lo ao eterno viver «entre duas ondas», na cisão oscilante de dois mundos: «Coração aqui, alma por ali e os olhos sempre para lá».
Tudo começa e acaba num infindável vaivém pela «rua do porto fora, até ao paredão da rocha», onde as vozes e as pausas das poucas falas que alimentam conversas longas e silenciosas se confundem «com o vento e a maresia», que emprestam aconchego às mais elevadas especulações e à partilha de íntimos estados de alma. Daquele porto nascem e partem desatinos, e a ele chegam também e fundeiam a âncora memórias que trazem saudades. As primeiras impressões do novo modo de vida da América, para os que lá acabam de chegar, são deslumbramentos em catadupa, sempre postos em contraste com o viver ilhéu, deixado para trás. Duas crianças veem com assombro neve pela primeira vez, aquele imenso «farelinho branco» sempre a cair, que «era um louvar-a-deus chovido do céu», e pasmam com o transporte gratuito para a escola ‒ «Lá, era a pé que a gente ia».
A adaptação a um estilo de vida em que tudo é diferente, língua, pessoas, ritmo de trabalho, torna mais sombrio o exílio dum paraíso perdido sem retorno, mas cada vez mais presente. A jornada saturante na «linha de montagem», trabalho mecânico em que dia após dia se repete gestos e movimentos e se conta à unidade a produção e as pausas, rola sem nunca parar pela inércia de cruéis engrenagens, «onde as rodas eram cada vez mais dentadas». As crises vencem as famílias pela fadiga, desgastadas por turnos desencontrados que, semana após semana, não deixam lugar à partilha de sentimentos e emoções, fontes de calor e bem-estar do ambiente duma vida em comum. Recém-chegados e desiludidos, vencidos pela canseira das rotinas cruéis, o refúgio acaba no isolamento «entre a alma e o coração».
Levar a vida com a cabeça enfiada «no ritmo infernal do fazer dinheiro» destempera o ânimo do jovem Duarte, operário a estudar engenharia, que se sente completamente «roto, por dentro. Quase envergonhado de si mesmo». No fundo da depressão, Alex, o professor amigo de todas as confidências, acaba por encontrar remédio numa apanha de lapas em Sakonnet Point, ao sul de Tiverton, «onde a água se parecia mais com o mar que desde o nascer fora seu conselheiro». Foi um regresso retemperador às origens em que, pela boca de Alex, a voz judiciosa do velho pai se faz ouvir: «Bota tino no barco. Chega-te para a tua campanha. Agarra na cana do leme. Tu é que és o mestre. Aguenta. Rijo, forte e valente. Isto vai passar. Sozinho dás à costa e deixas tudo tresmalhado. Sim eira nim beira».
A segunda parte do livro …e Outros Casos, de teor abertamente autobiográfico e mais chegado aos tempos de agora, contempla encontros e desencontros que só acontecem na vida escolar; percalços, em que o caricato das situações faz confluírem sentimentos, os mais diversos; tropelias, em que a demência dum velho professor de geografia torna mais próxima a vizinhança. Entre nomes de pessoas e lugares, mau tempo no mar, frios de inverno, em que o alento vinha do «meizim na loja do canto (…) para outro dia sem pão», sobressai em todo o livro a cumplicidade de muitos parceiros, amigos sempre fiéis ‒ Pantufas, Ladina, Bocanegra, Trigueiro, a gata Manhosa, e ainda os coelhos gigantes, a galinha vinagreira, o ninho dos cardeais. A presença dos animais, mesmo a sua afetuosa evocação, tempera a narrativa da comovente humanidade do modo de viver da nossa gente, de sabor tão inconfundível como o trago dum bom vinho que enche a boca e consola a alma.

As duas partes do livro partilham em comum o tema da condição humana à luz duma experiência de vida que cruza vários registos. José Costa fixa-os nas palavras sedutoras duma escrita, que terá sempre dificuldade em pensar e falar por nós, mas que consegue fazer brilhar sentimentos, emoções e até mesmo pensamentos e ditos sentenciosos, em finos e deleitosos arranjos literários que nos chegam em cativante leitura, ainda com salpicos de mar.

 

• José Luís Brandão da Luz