“E daí? Eu não faço milagres”, disse um chefe de Estado do outro lado do Atlântico. Em que estado nos encontramos para um líder internacional chegar ao ponto de se demitir da sua primeira e máxima responsabilidade, a de proteger a população? Ainda por cima, no seio de um evento tão catastrófico como a pandemia do coronavírus, sem grande punição do seu eleitorado?
Falo de Jair Bolsonaro, evidentemente. O Presidente do Brasil acusou, como é seu apanágio, os media brasileiros de retirarem as suas palavras do contexto, mentindo descaradamente - a pergunta da jornalista e a sua resposta estão gravadas em vídeo. Pior, o Sr. Messias utiliza os governadores e políticos locais como alvos de transferência, culpando-os pelo aumento dos casos e mortes provocadas pelo coronavírus no Brasil. E ainda tem o desplante de atiçar a opinião pública contra as tão necessárias medidas de distanciamento social.
É a velha artimanha do bode expiatório, expressão com origem no ritual em que Aarão transfere todos os pecados do seu povo para o animal. Maior ironia seria difícil, num país onde a religião e o Estado se confundem, também, mas não só, porque os seus políticos a utilizam a para mobilizar apoiantes. Na nossa memória recente está o batismo de Bolsonaro e dos seus filhos, em 2016, ainda antes de ser Presidente, no Rio Jordão, em Israel, (local onde Jesus Cristos terá sido batizado, segunda a Bíblia). Um acontecimento, claro, amplamente mediatizado em seu benefício.
Um inquérito publicado no dia 28 de março pelo instituto brasileiro de sondagens Datafolha regista uma taxa de aprovação de 33% do governo de Bolsonaro. Em sentido contrário, 38% rejeitam o seu desempenho. Embora o descontentamento com a gestão do executivo tenha crescido, um terço da população aceita uma forma de governar assente na descredibilização do que é evidenciado pelos factos. Porque estará uma minoria dos brasileiros disposta a ignorar um consenso global em torno das medidas tomadas para travar a pandemia e as suas terríveis consequências?
O livro Nervous States, de William Davies, dá-nos uma pista para respondermos a esta questão. Esta rejeição da verdade e da razão, explica Davies, aparenta ter uma explicação mais simples, fora da esfera da irracionalidade que muitas vezes nos é apresentada: é a negação de um “edifício político” construído nas últimas décadas que não beneficia a maioria.
Não são os factos que interessam, mas sim a capacidade de amplificar e sobrepor a todos os outros um discurso político que se sustenta nas emoções, em detrimento da razão. E muitas vezes encontra um eco na revolta contra uma desigualdade social que perdura. É o tal “edifício político” que foi sendo construído ao longo de décadas que o autor denuncia. Portanto, o medo da fome e da escassez de emprego pode ser mais violento do que a própria letalidade do vírus para os brasileiros Como diz Davies, “o medo da violência pode ser mais poderoso do que a própria violência”, traduzindo-se numa irracionalidade contra o que a ciência validou
Talvez seja esse o temor dos brasileiros: o do descalabro económico. E, por isso, fazem uma escolha que não é uma escolha, quando não lhes é apresentada alternativa: abdicar da sua segurança e da dos que os rodeiam, para que durante e depois da pandemia, não deixem de ter pão e feijão na mesa de jantar. Ignoram as evidências das consequências brutais que a covid-19 pode causar porque pensam ser a única maneira de conseguirem sobreviver.