Fragmentos entre dois continentes e Dos Vulcões ao Desterro

 

 

• Santos Narciso

 

Ambos com chancela da Chiado Editora, estes são os dois livros apresentados em pouco mais de um ano pelo jornalista João Gago da Câmara.

Tiveram já as suas apresentações no Continente portu­guês, na ilha Terceira, por altura das Sanjoaninas deste ano e, na passada sexta-feira, dia 29 de Julho, foram apresentados em Ponta Delgada, na Biblioteca Pública, com palavras de Alzira Silva.

Citando outro jornalista, Tomás Quental Mota Vieira, que fez a apresentação em Lisboa, na Casa dos Açores e na FNAC, se o primeiro é um livro de crónicas, peque­nos contos e textos descritivos, que se lê com muito gosto, o segundo é um misto de reportagem jornalística, investigação histórica e ensaio etnográfico, abordando a emigração de seis mil açorianos, há cerca de 250 anos, para a ilha de Santa Catarina, no Brasil. Esta obra será sempre uma referência para quem quiser conhecer e estudar a epopeia e a odisseia dos açorianos.

Recebi-os, com cativantes dedicatórias, no final do mês de Junho e têm sido minha frequente companhia.

Conheço João Gago da Câmara desde os anos setenta e cruzámo-nos nas lides do Correio dos Açores e na RDP/Açores. Irreverente quanto baste, dotado de um espírito aventureiro só próprio de quem sabe manter sempre um espírito jovem e aberto, João Gago da Câmara impôs-se pela sua maneira de ser muito própria e independente, que o leva a ser um apaixonado pelas coisas de que gosta e por aquilo que faz, desde o jornalis­mo e da rádio, até aos aviões e desporto e culminando agora na escrita de crónica e ficção.

Por isso mesmo nada me surpreendeu o seu desabafo em Fragmentos entre dois Continentes, onde mostra o sentido “diaspórico” que dorme dentro de qualquer açoriano:

Ser ilhéu é saber ver partir sem desesperar, é chorar o filho que ruma à nova vida, é dar mais salgado de lágrimas ao mar. Porque estes rochedos do nosso conten­ta­mento são eles também pedras que nos apartam e que nos retêm.

Na tenra idade, da ilha se parte para cursar o secundá­rio, o superior e o mestrado; da ilha se viaja por questões de saúde; da ilha parte um e chegam dois. Barcos, aviões e helicópteros são pés de ilha que os levam e que tardia­mente os trazem; e a onda e a nuvem são extensões de cora­ções partidos; ter mar pelo meio é quase outra forma de se ser outro emigrado do mundo; e o mundo está cheio de bocados de nós.

Fragmentos entre dois Continentes é um conjunto de saborosas crónicas com prefácio do Professor Ma­chado Pires que escreve que o mundo destas crónicas jornalísticas é o de quem exercitou a profissão desde cedo, de quem viajou com proveito (Marrocos, Corunha, Brasil (Santa Catarina, por exemplo), de quem ama a música portuguesa original, (de notar que entrevistou Amália), de quem rejeita a modernidade abstrusa ou de mau gosto…

Na página 31 deste Entre Dois Continentes há uma cu­riosa e intimista forma de regresso ao passado, intitulada Voto no Povo, de que saliento esta passagem, espelho de muitas imagens da minha infância e juventude, no que gostava e no que detestava: Voto na carroça, na junta de bois, nos cardápios da minha avó, em sopas de cavalo cansado, em piões e carro de esferas, voto em pais a ensi­narem boas maneiras. Voto no rezar antes da janta, nos serões de conversar, nas anti-febris batatas na testa, em papas de serrabulho, no trato à rédea curta, no sorrir para toda a gente. Voto no descer a rocha de burro, no vindimar nas encostas da ilha, no saltar no calhau preto, no correr nas verdes pastagens.

Voto no explicador de chibata na mão, no docente que arremessa o tinteiro, nos dois escudos do fim de semana, no cantar feliz da mãe. Voto no ciclismo para namorar, no pedir da mão ao sogro, nos piqueniques na mata da lagoa. Voto no futebol desportista, no crescer em saúde, no rir à boca cheia, e com os olhos, e com a alma. Voto em passageiros a empurrarem camionetas, no ir a pé para a escola, no cozinhar cheiroso na lenha.

Também me fascinou aquela crónica Ilha evasão, Ilha prisão, porque também me interrogo assim: Custa a entender como se consegue gostar de uma terra que nos empurra para a emigração e que insistentemente nos agride do ponto de vista económico, mas que, apesar da vicissitudes, vai tendo sempre gente a habitá-la… E eu acrescentaria e a amá-la!

Dos Vulcões ao Desterro, editado já este ano, em Abril, é uma obra de maior fôlego, mas de igual sentimento, onde respira o jornalista e o cronista numa agradável simbiose de história, etnografia e até afectividade.

Como se lê na contracapa do próprio livro, trata-se de um conjunto de crónicas e narrativas do autor, “enri­quecido por fragmentos de entrevistas realizadas com personalidades de vários segmentos, envolvidas de alguma forma com o fenómeno da Açorianidade, nos dois lados do Atlântico. Navegar sobre estas linhas é singrar caminhos que se reconhece: as entrevistas refletem momentos históricos e olhares específicos, a partir das viagens do autor para Florianópolis – Santa Catarina em 1996 e no outono de 1999, embora alguns dados tenham sofrido atualizações à data em que se publica esta obra. Os relatos da vivência do jornalista João Gago da Câmara transmitem um carácter des­pojado e curioso sobre Santa Catarina, complemen­tando-se com a indicação de autores que ao longo dos tempos pesquisaram, analisaram e registaram os fenó­menos culturais locais. O livro trilha caminhos que se reconhece e torna-se, na linguagem do autor, um veículo de encontro entre dois mundos, resultado de uma memória afetiva coletiva que se conecta na história agora partilhada”.

Li e guardo com muito carinho um livro de Lélia Pereira Nunes (Lélia Nunes), intitulado Na Esquina das Ilhas… Ela que é citada neste Dos Vulcões ao Desterro, com o seu Caminhos do Divino: um olhar sobre as festas do Divino Espírito Santo em Santa Catarina. Agora vou guardar este de João Gago da Câmara como espelho retrovisor da história que nos leva a esquinas diferentes nos nossos caminhos comuns.

Pelos Fragmentos entre dois Continentes e por este dos Vulcões ao Desterro, fica o meu abraço a João Gago da Câmara. E se ele fecha o seu primeiro livro com uma sentida crónica A Ti, Mãe, seja-me permitido terminar dizendo que seu Pai, o meu Amigo João Gago da Câ­ma­ra, ficaria orgulhoso do filho, por estes dois livros. E que venham mais! De preferência numa editora aço­riana!

— In Atlântico Expresso