A segunda morte de Antero de Quental

 

Se o revoltoso e revoltado Antero de Quental voltasse ao nosso convívio, tenho a certeza de que ele não resistiria a estoirar os miolos uma segunda vez. E isto porque este “génio que era um santo” (no dizer de Eça de Queiroz) continuaria a não se entender com o Portugal contemporâneo.
Antero não suportaria verificar que os conservadores da tradição e do passado ainda andam por aí. A cultivar a cultura do “bom senso e do bom gosto”… A cultura do crivo e do tafetá… A cultura impressionista dos poetas contemplativos, outonais, tumulares, paisagísticos, crepusculares e meteorológicos, que versejam o crochet das palavras floreadas… A cultura maneirista e barroca dos rendilhados rococós… A cultura dos lirismos de almanaque e das futilidades magazinescas… A cultura da coscuvilhice, do cochicho, das banalidadezinhas e dos escandalozinhos fortuitos… A cultura pitoresca e picaresca da sabedoriazinha em notas de roda pé… A cultura choramingas e videirinha dos letrados de pechisbeque e dos manguinhas de alpaca frouxos de ideias… A cultura snob das damas decotadas e cocotes, que estudaram o decoro em colégios do Sagrado Coração de Maria e que servem cházinhos de caridade à hora das telenovelas… A cultura do caruncho caturra de académicos enfatuados (outros Basílios…) que ensinam com ar de antiqualha e sapiência ex-cathedra… A cultura encenada dos decorativos cultores de arte e dos zelotas da miúda erudição… A cultura hipócrita, burguesa e pasteurizada da etiqueta social, dos botões de punho e dos colarinhos engomados… A cultura acomodatícia dos preceitos e dos preconceitos… A cultura moralista e edificante da ética bem-comportada… A cultura do despacho e do decreto-lei e a cultura do palavreadinho político… Enfim, a cultura desse terrível “provincianismo mental” contra o qual Antero tanto se insurgiu.
Custaria, sobretudo, ao poeta filósofo aperceber-se que outras formas de medievalismo, de senhorialismo, de censura, de repressão inquisitorial, de fanatismo e despotismo continuam a existir no Portugal dos nossos dias. Antero haveria de reescrever a gritante actualidade da sua palestra “Causas da decadência dos povos peninsulares”, para nos lembrar que a submissão dos portugueses aos princípios cristãos condicionou sempre o seu desenvolvimento social, económico e cultural.
Ah, como sofreria Antero ao conviver com os filisteus do poder… Como ele sentiria vontade de dar bordoadas em alguns ministros, secretários, deputados, literatelhos, peralvilhos, poetastros, escreventes, panegiristas e outros ortodoxos do luso obscurantismo. Que afronta para as suas concepções filosóficas do idealismo hegeliano saber que Portugal suportou o pesado fardo de uma ditadura durante meio século. E quanta inquietação para o seu espírito insurrecto ao verificar que, apesar da redentora revolução de abril, o salazarismo continua ainda, em muitos casos, a predominar como atitude mental…
Com efeito, o Antero socialista e radical ficaria desassossegado com o estado da nossa miséria intelectual e, sem dúvida, lastimaria não só a apatia da actual sociedade portuguesa, como também o insucesso político de muitos dos nossos governantes. E que diria ele da submissão dos valores culturais aos valores do mercado?
Mas a raiva maior de Antero seria a de considerar que o estrabismo dos Castilhos, dos Abranhos, dos Acácios, dos Gouvarinhos e dos Bolamas de hoje continuam a adiar a revolução moral e impedir que o Pensamento, a liberdade do pensamento, a justiça e o progresso voem mais alto.
É que Portugal, salvo as honrosas excepções, já não produz homens com ideias; hoje, o nosso país produz apenas tecnocratas em série, economistas a eito, doutores e engenheiros a granel e, sobretudo, burocratas, muitos e desvairados burocratas…
Por conseguinte, ontem como hoje, teria Antero de consumir muita energia, muito talento e redobrado esforço para tentar fazer aquilo por que lutou durante os seus 49 anos de vida: criar uma nova forma de sociedade – uma sociedade mais livre, mais progressista e mais justa.
Os nervos de Antero não aguentariam testemunhar essa impotência de melhorar Portugal. Contra as mentes peçonhentas, pastosas, bovinas, contra os promotores do poder, da riqueza, do mando e da glória, haveria Antero de erguer bem alto a espada de Dâmocles…
E, assim, sem questões coimbrãs, sem polémicas e sem gerações de 70 para liderar; sem discussões filosóficas, políticas, económicas, sociais e culturais para combater, restaria de novo a Antero a inquietação metafísica e o banco junto ao Convento da Esperança…
Mas ainda antes de ir comprar o revólver “Lefauchaux”, na Loja Férin, haveria o atormentado Antero de redigir as mesmíssimas palavras que, no dia 26 de janeiro de 1890, escrevia no jornal “A Província”:
“Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente, ou deixará de existir”.

Antero Tarquínio de Quental que, no século XIX entrevia já a direcção definitiva do pensamento europeu, dava, assim, uma acutilante advertência a todos nós, que, nos dias de hoje, a contas com arreliantes crises financeiras e económicas, andamos verdadeiramente desesperados com as bem-aventuranças da União Europeia e desorientados com o desconcerto do mundo.