A cabra peada e o computador

 

Nas visitas rotineiras que faço ao meu amigo Manuel Garcia, aqui nos arredores da cidade, gosto sempre de botar o olho ao pequeno rancho de cabras que ele cria, sem outro interesse que não seja regalar os olhos a vê-las passear pelo largo pasto da propriedade, à sombra de altas e frondosas árvores.
São simpáticas, aquelas cabras e cabritos. Olham-me assim de soslaio, com o pescoço de banda, quase que a dar entender que vêem melhor de um olho do que do outro, como que a inquirir quem será aquele careca que gosta de lhes tirar retratos. O Manuel não as ordenha, não faz queijos frescos, nem as mata para alcatra; quando estão no ponto certo, vende-as a um senhor mexicano que as comercializa. “Não tenho coragem de as comer”,  diz-me, com o chapéu na mão, a afugentar mosquitos teimosos. “E não posso comer queijos, a lactose faz-me mal ao estômago”, informa-me o octogenário, usando um termo que, de certeza, nunca a sua boca terá pronunciado nas duas dezenas de anos que viveu na sua querida ilha do Faial.
Na casa da minha meninice na Miragaia, havia, na loja de arrumos, uma miniatura de carroça típica dos vendedores ambulantes da Terceira, de tamanho ideal para ser puxada por uma cabra ou bode. Com um banco dianteiro e dois bancos laterais, por debaixo dos quais se distribuíam pequenos compartimentos de arrumo, e ainda uma portinhola de acesso nas traseiras, a carrocinha, que eu me lembre e enquanto esteve na posse da nossa família, nunca viu cabra ou bode entre os minúsculos varais. Servia apenas para brincadeiras dos rapazes da casa. Imaginávamos vendas de ovos, galinhas e batatas a fregueses inexistentes, trocávamos produtos por bolas de vidro e “repetidos” das cadernetas dos cromos de futebol. Lembro-me que, em certa altura, o meu pai comprou uma cabra, que foi residir para os cerrados das Mónicas, talvez com o intuito de ela ser o motor da carrocinha. Tal nunca aconteceu, a cabra era malina e fugidiça, gostava de marrar, o J.G. até atrevia-se a toureá-la com um pano velho. Como solução, o Ti Manel de Sanmiguel, hortelão da casa, mantinha-a peada, não fosse ela guindar para o pátio do José Albino.
Outro dia levei uma lição de civismo da parte do meu amigo. Fui imprudente, perguntei se ele peava as cabras, para não saltarem para a criação de cavalos que fica mesmo ao lado. “Diz-me lá uma coisa, Dom João”. Quando o Manuel me fala assim, é sinal de que vou levar um raspanete. “Então tu gostavas que te amarrassem as penas? Como é que ias andar?” Claro que tive que concordar, ainda ouvi o Manuel terminar a sua sentença, afirmando que “Estes bichos são como a gente, não merecem andar presos por uma corda, como vocês fazem aos toiros lá na tua terra”. De uma assentada, apanhei duas lições, as doces ameixas que o meu amigo me ofereceu quase que nem me fizeram esquecer o amargo da minha falta de senso.
Nestes últimos dias também eu me tenho sentido peado. Não, não estou amarrado a uma cama de hospital, nem tenho problemas de locomoção. Acontece que, talvez por descuido meu ao tocar indevidamente nalguma tecla do computador, ele começou a dar-me problemas. Aparecia-me o diabo da “bola de praia” a circular por todo o écran, sinal característico dos computadores Mac quando estão doentes ou infetados. Não conseguia fazer nada com jeito, os programas não obedeciam, não podia enviar ou receber mensagens, nem sequer me deixava escrever a crónica para o jornal. Para mais, tenho entre mãos uma briga com uma agência de viagens e a companhia de seguros que me vendeu uma apólice de cancelamento, de forma que tinha necessidade premente de usar o computador. Mas, quanto mais tentava, mais o cabrito do computador se recusava a obedecer.
Desesperado, já mesmo depois de ter passado uma noite em claro, contratei um técnico para vir a minha casa. O engenheiro, talvez só de nome, bem que se esforçou, só que ao fim de quatro horas de tentativas, de apagar e ligar de novo a máquina, de experimentar esta e outra técnica, não adiantou nada, até parece-me que o funcionamento, que já era péssimo, ficou bem pior. Porta fora foi o homenzinho, não sem me levar uns patacos e sugerir que levasse o aparelho diretamente à Apple. Segui o conselho dele e então, depois de dois dias de espera e de mais um jeitoso desfalco nas minhas finanças, o problema ficou resolvido. 
Esta conversa toda só para vos dizer que mais uma vez me convenci que estamos de tal modo embrulhados com estas máquinas modernas que já não sabemos viver sem elas. Quando algo falha, ficamos pior que uma cabra peada, sem poder acompanhar as outras e alcançar as ervas mais verdes. Seja computador, telefone, impressoras ou televisões, somos controlados pelos seus bons funcionamentos; se nos pregam partidas, ficamos a bater pano, qual veleiro sem vento.
E, no meio destas desgraças, que geralmente nunca aparecem isoladas, as grandes companhias aproveitam-se para nos fazer pagar um balúrdio por consertos e por assinaturas anuais. Podemos berrar como cabras bravas, elas não se comovem. Aprendi, por exemplo, que a Microsoft, a companhia que criou e detém os direitos do programa que subscrevo para alinhavar estas crónicas, não facilita qualquer acesso de ajuda por telefone, se te aparece um problema, tens que recorrer a comunicação pela internet e isso, para nabos como eu, é o mesmo que me por a comandar numa nave espacial. 
Estas modernices facilitam-nos a vida – comunicamos com meio-mundo, pagamos as contas sem gastar envelopes e selos, lemos livros, vemos espectáculos encenados à distância de continentes e oceanos, visitamos lugares e museus sem sairmos de casa – mas, quando dão para o torto, são causadoras de grandes frustações e inquietações. Não quero regressar aos tempos das vendas ambulantes em carroças puxadas por cavalos e mulas, só que, às vezes, sinto falta da quietude, da calma e do sossego de outras épocas, onde não éramos controlados por máquinas. Para mim, não há coisa que me embrulhe mais o juízo do que me aperceber, quando telefono para resolver um assunto, que estou a falar com um robot ou com um call-center na Índia, com tele-funcionários cujo sotaque é bem pior do que o meu. Tudo muito frio, impessoal.
Ao menos as cabras do Manuel olham para mim quando as visito.