NOTA DO AUTOR: Há poucos dias, na sua página do Facebook, o meu amigo Emanuel Félix – filho do galardoado Poeta Emanuel Félix e neto do sr. Manuel Praiana – publicou a bonita fotografia do seu avô, à porta da Mercearia. Fez-me recordar a crónica que escrevi para o livro “A LOJA DO TI BAILHÃO”, publicado em 22 de Junho de 2015, em Angra.
Nas décadas de 60 e 70 do século passado, existiam, na cidade de Angra do Heroísmo, agora Património Mundial, muitas mercearias. A era das grandes superfícies comerciais estava ainda muito longe. À exceção de três ou quatro estabelecimentos de maiores dimensões – o Guiod de Castro, os Armazéns Berbereia e Lourenço, o Basílio Simões, os Armazéns Zeferino --, todos os outros eram de reduzido tamanho.
O aparecimento do mercado Mini-Max já trouxe uma lufada de ar fresco ao comércio, mas foi, talvez, o princípio do fim das mercearias tradicionais. Com aspeto, mobiliário e produtos à venda muito semelhantes aos da nossa Loja, espalhavam-se pelas freguesias citadinas e marcavam presença também no centro histórico da urbe.
Algumas ficaram famosas e, tenho a certeza, em todas se viveram estórias parecidas com as que aqui têm sido descritas. Seguramente, lá apareciam figuras que se tornaram conhecidas pelos seus feitos, seus ditos e suas maneiras de ser. Proprietários e empregados de balcão criaram amizades com os seus fiéis clientes. O rol dos fiados pode ter trazido dissabores a alguns, mas havia sempre uma solução amigável para resolver um desentendido. Todos os dias se ouviam casos de donos de mercearias que matavam a fome a desamparados e ajudavam gente necessitada, oferecendo produtos de consumo e esquecendo dívidas impagáveis.
Percorrendo as ruas da cidade, era fácil encontrar lojas que vendiam de tudo um pouco. Algumas delas também tinham, como a Loja do Ti Bailhão, espaços reservados ao consumo de bebidas alcoólicas, as chamadas tabernas ou botequins. Eram quase todas só mercearias.
Em São Pedro, a Mercearia Lusitânia marcou uma época, sendo a mesma família ainda responsável pelo funcionamento de uma pastelaria e de um restaurante com o mesmo nome; No Alto das Covas, pontificava a mercearia do Daniel Lourinho, meu padrinho do Crisma e grande amigo da nossa família. Na Rua do Rego, em Santa Luzia, a Mercearia do Sr. Henrique dividia os seus clientes com o Mercado Duque de Bragança. Na mesma freguesia, havia ainda a salientar a Loja do Sr. Arnaldo, em frente à Ermida das Mónicas e a Venda do Naldir, em São João de Deus.
No outro extremo da cidade, em São Bento, a Mercearia dos Morcilhas, aparelhada também com um talho, servia a população daquela zona, assim como a Venda do Manuel das Lajes. Mais abaixo, na Rua do Galo, a Mercearia do Almeida competia com a do Sr. Aurélio e com a Loja do José Tomás, esta já na Praça Velha. Na Rua da Palha, ainda me lembro da Zenite e da mercearia do Augusto Galinha. Ouvi também falar na Mercearia Praiana, mas essa desapareceu antes do meu tempo. E algumas mais devem ter existido, mas que neste momento, me fugiram da memória.
De salientar que, na generalidade, não tinham nomes próprio. Eram conhecidas pelos nomes dos proprietários, que mantinham entre si cordiais relações comerciais e de amizade. Bastas vezes recorriam uns aos outros em situações de falta de produtos. Quando algo escasseava numa loja, era frequente ir à do amigo para conseguir farinha, açúcar ou bacalhau para satisfazer a sua própria clientela. Casos havia também de acesas inimizades e falhas de entendimento.
Um pormenor engraçado que todas tinham em comum: os dísticos humorísticos a avisar contra o abuso dos fiados. “Fiados, só amanhã, hoje não” era um dos mais usados. Alguns destes cartazes estavam acompanhados dos populares bonecos das Caldas, com os seus manguitos malcriados.
Na Loja do Ti Bailhão, não havia boneco das Caldas. Em seu lugar, mas guardado dos olhares dos clientes, havia, sim, um Santo António pequenino, mas não menos malcriado. O Pai tinha o cuidado de o ter escondido e fora do nosso alcance, mas, garotinhos como éramos, arranjávamos maneira, quando o apanhávamos à mão, de lhe puxar no cordel e lá aparecia a «terceira perna» do santo, com todo o seu esplendor avermelhado!
Manuel Félix da Silva, o Manuel Praiana, como era conhecido por todos, sabia da existência do Santo António. Brincalhão e galhofeiro como poucos, quando passava à porta, metia a cabeça e perguntava, «Ó João, o Santo está hoje bem arrebitado?». Se estava da veia, o Ti João respondia-lhe de imediato: «Mandei-o para a Loja do Galinha. Vai lá perguntar, se queres saber». Era caçoada amigável. O Ti João sabia bem a que se referia. Manuel Praiana, educado e boa pessoa, não fazia mal a ninguém. Só que gostava de pregar umas partidas inofensivas.
Manuel, como a alcunha indicava, era natural da Praia da Vitória. Quando se mudou para Angra, possivelmente para facilitar os estudos às filhas e ao filho Emanuel, estabeleceu-se com mercearia na Rua da Palha, na loja onde hoje está a Casa de Chá «O Marquês». Certo dia, entrou-lhe pela porta dentro um jorgense, homem que tinha vindo a Angra vender fruta e legumes e que queria, desesperadamente, desfazer-se de uma saca de feijão preto antes de apanhar o «barco do Pico» dessa tarde, de regresso à Calheta. Manuel teve pena dele e, embora soubesse que ia ter problemas para vender o feijão, que não era coisa muito usada na culinária angrense, decidiu ficar com a saca. Depois, havia de arranjar maneira de o pôr fora de portas.
Ninguém comprava o feijão! Manuel, esperto e atrevido, pediu, então, a dois ou três fregueses, dos mais leais e fiéis, que fossem à loja do Galinha, duas portas abaixo e perguntassem se ele tinha feijão preto para vender. Mas, cautela, não deveriam dizer de onde vinham.
Nessa tarde, à hora de fechar as portas – já haviam soado as Trindades no campanário da Sé –, Augusto Galinha veio inquirir se o Praiana tinha feijão preto para vender. «Hoje, tive um monte de gente a perguntar. Se tivesse, tinha feito um dia disparatado de negócio».
Manuel, calmo e sereno, respondeu que «Sim, senhor! Tenho ainda ali uma saca. Hoje também vendi bastante», adiantou, mentindo. «Se queres, vendo-te o resto». Negócio fechado e «Até amanhã, se Deus quiser».
Passados meses, quando se dirigia a sua casa, no fim da mesma Rua da Palha, Manuel Praiana cruzou-se com o moço de voltas do Augusto Galinha. Vinha com uma saca de lona vazia sobre os ombros. Sem mesmo o Manuel ter perguntado nada, o rapaz fez saber que tinha ido deitar o feijão ao mar, «Apodreceu e criou gorgulho. Nunca o vendemos».
Não sei se a amizade entre os dois comerciantes terá resistido a este episódio. Mas não duvido que Augusto Galinha também não tenha engendrado um estratagema para, de algum modo, acertas as contas. O que sei, e isso testemunhei pessoalmente, é que a relação de amizade do Manuel Félix da Silva com o Ti João Bailhão, essa durou para sempre.
O Santo António malcriado também sorria ao ouvir as gargalhadas deles.