Sobre o livro Barro Vermelho - Ilha Branca de João Bendito

 

 

Meu caro amigo João, 

Acabo de ler o teu Barro Vermelho – Ilha Branca, e devo dizer-te que foi um prazer ouvir o pulsar da tua excelente memória sobre um tempo que, afinal, não passou porque está para sempre registado nas páginas do teu livro. 
Com efeito, chegas à Graciosa da tua infância e juventude, abres as portas daquele ‘’pedregulho açórico’’ (173), e deixas a alma contar uma mão cheia de casos que te habitam o coração. Sim, porque, para contar da forma como o fazes, é preciso amar o objecto da estória dita e escrita. Cada capítulo é um encadeamento, de pendor sinestésico, que traz, nas vozes e gestos de todos os personagens, o gosto do pão fresco, o sabor dos torremos de cancela e molhangas de peixe, a doçura dos figos de figueira, o perfume do vinho novo, o cheiro do mar à porta de casa. Deste modo, ressuscitas um mundo que o tempo levou do seu lugar. Porque a tua memória faz esse ‘’milagre’’, que é o de nos envolver numa retrospectiva vivencial que nos faz sentir como participantes nas tuas estórias. Embora o que afirmo pretenda ser uma generalização para todo o livro, devo dizer que o texto “Com os Pés se Faz o (Bom) Vinho’’ (39) é, a meu ver, um bom exemplo de como consegues atrair o leitor para a convivência espácio-temporal, que, neste caso, é a saudável algazarra de fazer o vinho. Ficamos com a sensação de que conhecemos os personagens, habitámos os espaços, brincámos, rimos, e até chorámos as desarmonias da santa paz da ilha. NA verdade, penso que há, pelo menos, uma geração – a nossa – que se revê, com saudade, nas tuas crónicas. (Basta apontar, como exemplo, ‘’As Brincadeiras de Rapazes’’, 50). O espaço e o tempo são-nos familiares, bem como vocabulário, todo ele entremeado de expressões que vão desaparecendo da nossa fala comum. Daqui resulta uma escrita que privilegia a memória estruturalmente afectiva, que se expressa constantemente em frases como esta: ‘’Passaram-se cinquenta e cinco anos e eu, que nunca mais fui às Festas de Santo Cristo, ainda lá estou.’’(61). Um outro bom exemplo, entre tantos, deste contínuo recordar com o coração nas mãos, é o texto intitulado “A Bola no Nariz da Lena’’ (67).
Não poderia deixar de referir o lugar preponderante da presença do mar na tua narrativa, ou seja, o modo como tratas o nosso mar: um verdadeiro personagem, amigo quase sempre, difícil de entender em algumas ocasiões, mas que nos acompanha para o resto da vida, como membro querido e respeitado por toda a família. Se é verdade que, - como diz ‘’[…] um emigrante que se queixava das asperezas do mar de Betefete […] (86) – ‘Os mares são como os homens, são todos diferentes.’(ibid.), também é certo que o oceano que dá sentido às nossas ilhas adquire  um perfil  que lhe é atribuído pela terra e pela gente que ele rodeia. Em toada de personificação, e para te cingires ao caso açoriano, reconheces que ‘’Mesmo nas nossas Ilhas de Bruma, os mares não são constantes. O dos Biscoitos ou das Quatro Ribeiras é mais arrebitado e mais bravo que um touro; o mar dos Capelinhos ‘e mais explosivo, negro e inconstante; e, nas costas do Corvo, o mar é solitário, desconfiado e matreiro.’’(ibid.) Por estas razões (E há mais.) formulas a pergunta, tão nossa e universal: ‘’Será que o mar tem ALMA?” (87) O ‘’sim’’, já implícito na tua interrogação - e, como sabemos, profundamente explicitado na nossa poética da insularidade – está muito bem condensado nos versos, que citas, de Artur Goulart e Marcolino Candeias.(ibid.) 
Para terminar, gostaria ainda de anotar o facto de que terás deixado (De propósito?) para o fim páginas de refinado sabor à nossa tradicional crónica, multifacetada de historicidade e alguns alinhavos de ficção. Com efeito, o teu “O Choro dos Músicos Negros” (169) é um texto exemplar no que respeita à nossa literatura de viagens, em que a chegada e a partida são as metades do pão que nos há-de alimentar o nosso existir enquanto a ilha for. Assim, contando estórias com História, consegues “soprar o pó que cobre as raízes da saudade’’ (192). Só espero que o teu desabafo final de que “A viagem chegou ao fim…” (196) tenha o real valor das reticências: continuarás a escrever. 

Parabéns. 

Um grande abraço
José Francisco Costa