A Festa da Coroa e o Hino da Alva Pomba - Bom Jesus do Itabapoana

 

 

“Alva Pomba que meiga aparecestes,/

ao Messias no rio Jordão,/

estendei vossas asas celestes/

sobre os povos do orbe cristão.(...)”

 

(do Hino do Espírito Santo)

 

 

O tempo das Festas do Espírito Santo vai ficando para trás e  ainda sinto o aroma das massas sovadas, do arroz doce, o fumegar  das sopas e o buquê do vinho partilhado com toda a gente e por toda parte, seja nas comunidades de imigrantes da América e Canadá, seja no Brasil. 

Pela imprensa e redes sociais acompanhei o desenrolar das festas nos Açores, na Califórnia, no Québec e, no último fim de semana, as Grandes Festas do Espírito Santo na Costa Leste.

Estava em Ponta Delgada quando do encerramento das Grandes Festas do Espírito Santo. Na Ceia dos Criadores tive a oportunidade de, mais uma vez, assistir o Grupo de Foliões da Covoada e a apresentação  destacada de António Almeida a cantar de improviso, a tirar  seus versos em homenagem ao Divino. Sempre me emociono ao ouvir cantar o Hino do Espírito Santo nas freguesias, vilas e cidades dos Açores. Naquela noite não foi diferente. Entoado por todos os presentes o hino de fé, de identidade e de autonomia do povo das ilhas açorianas.

Reflito que o hino do Espírito Santo açoriano não é executado no Sul do Brasil. Ele não está aqui. Acredito que a razão seja histórica. Nossos açorianos chegaram no século XVIII e o hino, letra e música, de autoria do micaelense, Padre Delgado, deve ter sido composto no final no início do XIX. (Observo que há controvérsias quanto a autoria)

Meses atrás recebi de Antônio Soares Borges uma gravação com o “Hino da Alva Pomba” entoado desde o século XIX em Bom Jesus do Itabapoana, uma pequena cidade do estado do Rio de Janeiro, pela Lira Operária Bonjesuense num compasso mais lento para acompanhar a procissão das coroas que ocorre a 13, 14 e 15 de agosto – a Festa da Coroa. (https://www.youtube.com/watch? v=LhPjJDV-DN8).  Antônio Soares Borges é pesquisador da história local e em especial da devoção do Espírito Santo em Itabapoana e seu vínculo com os Açores. Com certeza foi a Festa do Espírito Santo, patrimônio cultural imaterial de Santa Catarina e a celebração religiosa mais significativa de Itabapoana (também ali com raízes açorianas) que nos aproximou e desde então temos trocado muitas informações sobre as nossas festas e a nossa fé no Divino.

Antônio Borges tem seus ancestrais nos Açores. Afirma que seu 5° avô, Francisco Lourenço Borges “nasceu em 21 de Janeiro de 1774, na freguesia de São Miguel Arcanjo das Lajes, na Ilha Terceira”, conforme pesquisa realizada por ele no Centro de Conhecimento dos Açores, Biblioteca Digital – Lajes, Baptismos, 1751 – 1769.  Francisco Lourenço veio para o Brasil muito jovem, ainda no século XVIII, estabelecendo-se em Minas Gerais. Aos 16 anos já trabalhava como tropeiro de cargas, abastecendo as praças de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Comerciante, político e muito religioso. Trouxe da sua Terceira a devoção ao Espírito Santo que fez florescer em terras mineiras e fluminenses tendo sido, também, membro remido de várias Irmandades.

A festa conhecida como “Festa de Agosto” ou “Festa da Coroa” surge entre os anos 1860 e 1862, quando Francisco José Borges (filho do açoriano Francisco Lourenço) trouxe das Minas Gerais as insígnias do Espírito Santo – a coroa e o cetro – fundou a Irmandade do Espírito Santo e doou as opas para os irmãos. Era o revitalizar de uma tradição secular nas terras e Santa Cruz. No início, a Festa do Divino Espírito Santo de Bom Jesus, era celebrada no mês de Maio, consistindo atos religiosos e sociais: Coroação, Cortejo, Missas e distribuição de esmolas e mais solenidades no domingo de Pentecostes.  Como a economia do município estava assentada na cultura do café e, como a colheita e venda do café se dava em Julho, a Festa foi transferida para o mês de Agosto coincidindo com a época de celebração do santo de orago “Bom Jesus” (6 de Agosto). Desta forma passaram a celebrar a Festa do Padroeiro e a Festa do Divino Espírito Santo nos dias 13, 14 e 15 agosto, dia consagrado à N.S. da Anunciação, com grandes festejos, bandeira, coroas e coroações, procissões e tríduos. Enfim, tudo que comumente integra a tradição do Espírito Santo, porém fora do tempo de Pentecostes. 

No entanto, o tal “Hino da Alva Pomba” aguçava minha curiosidade. Na verdade, intrigava-me. Constatei que se tratava do mesmo Hino do Espirito Santo dos Açores. Mas, porque chamavam de “Hino da Alva Pomba” e como chegara a Bom Jesus do Itabapoana, onde é executado e cantado, se a Festa era de 1762 e o Hino foi composto no século XIX.  Até onde eu tinha conhecimento somente nas comunidades açorianas das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro entoavam o Hino nas celebrações do Espírito Santo. Com a ajuda do pesquisador Antônio Soares Borges o mistério foi solucionado.  Só podia ser coisa de açoriano ali chegado. E foi...  Padre António Francisco de Mello, micaelense, nato em 27 de Abril de 1863 na Achada Grande, Concelho do Nordeste, filho de Mariano Francisco de Mello e Rosa Pimentel de Mello, chegou a Bom Jesus do Itabapoana com Provisão de Vigário em 18 de junho de 1899, acompanhado da irmã Maria Júlia de Mello e de uma amiga da família de nome Cândida.

Padre Mello vendo a grande devoção do povo e com que dedicação celebrava o Espírito Santo fez algumas inovações como as entronizações da Bandeira, da Coroa e Cetro nas casas (seriam quartos do Espírito Santo?), e a mudança da Coroa à noite para a Igreja Matriz. Após, a Ladainha seria levada para outra moradia. Sabemos que nas nove ilhas açorianas não existe uma freguesia que não celebre o Espírito Santo. O pároco legou as tradições micaelenses aos brasileiros da pequena Itabapoana que desde 1862 é mantido com muito amor e sem interrupção.

Até a sua morte no dia 13 de Agosto de 1947, em plena Festa do Espírito Santo, o Padre António Francisco de Mello exerceu sua liderança espiritual e foi e continua sendo uma referência do povo bonjesuense na educação e na cultura do município. Além disso, foi poeta, escritor e redator do jornal “Meu Campinho.” Colaborou em outros periódicos locais, entre os quais “A Voz do Povo” e o “Itabapoana”. Na Festa da Coroa ou a Festa de Agosto, a maior manifestação cultural de Itabapoana, as marcas da vivência do Padre Mello naquelas paragens são visíveis na beleza de uma tradição religiosa forte, herdeira de um patrimônio simbólico que consubstancia o imaginário do lugar. Onde a partilha do espírito comunga com a partilha do pão e do vinho, revivificados no festivo e solene ritual espelhado, de forma singular, numa cidade do interior do Brasil. Aquele chão de permanência adotado por um sacerdote micaelense que presenteou com “prendas” da sua terra insular para honrar o Divino. 

Para Antônio Borges que traz nas veias o sangue terceirense de Francisco Lourenço Borges esta é a sua identidade e seus significados mais profundos, totalmente enraizados no cotidiano do povo de Bom Jesus do Itabapoana, marcando de forma extraordinária a vida cultural daquela comunidade.

Impossível não reconhecer o quanto o Padre Mello contribuiu para o desenho dessa geografia de afetos, o reconhecimento de uma história comum e o caráter identitário dos bonjesuenses unidos no louvor ao  Espírito Santo e no cantar do Hino da Alva Pomba.