
“Qualquer revolução que não se realize
dentro dos costumes e das ideias fracassa.”
Chateaubriand 1786-1848
Há anos que andámos a falar sobre a juventude nas nossas comunidades de origem portuguesa em terras californianas. Há anos que as instituições comunitárias, alguns dos nossos ativistas culturais, alguns padres em paróquias com comunidades portuguesas, educadores (nas escolas comunitárias e nas escolas do ensino oficial americano) jornalistas e produtores de programas de rádio e de televisão em língua portuguesa, académicos e até mesmo alguns dos diplomatas que representam Portugal em terras norteamericanas, têm dissertado, sobre a nossa juventude, a passagem do legado cultural aos mais novos, e o papel dos jovens adultos nas nossas, cada vez mais envelhecidas comunidades de origem portuguesa, em terras do novo mundo. Mas apesar de já muito se ter dito, de algumas reflexões pertinentes que se têm feito, o debate deve continuar, a cogitação não pode terminar e há que passarmos à ação. Até porque não existem soluções mágicas, e a comunidade necessita, urgentemente, que se criem ainda mais espaços de meditação e de ação sobre, e com a juventude de hoje, e a comunidade de amanhã. Já o dizia Ghandi: o futuro dependerá daquilo que fazemos hoje.
Não é novidade nenhuma que comunidades de origem portuguesa, quase todas açorianas, no estado da Califórnia estão cada vez mais americanas. Olhando às várias zonas onde existem comunidades com gente oriunda dos Açores, ou os seus descendentes, notase, com a passagem de cada novo dia, uma mudança, natural e em muitos aspetos, extramente positiva. Há cerca de quatro décadas, quando a emigração dos Açores praticamente estancou para terras do Eldorado, contavamse pelos dedos de uma mão o número de jovens adultos açordescendentes com cursos universitários. Tínhamos alguns professores, alguns licenciados e engenharia e pouquíssimos nos campos da medicina e do direito. Na medicina ainda estamos muito deficitários. Eram extremamente pacatos os números de alunos que ao terminarem os estudos secundários optavam pelo ensino superior ou mesmo por um curso técnico. Mais, nesse nada longínquo tempo, considerando a nossa presença como diáspora neste estado, com mais de 150 anos de existência, tínhamos, um pouco pelas nossas comunidades, e com ênfase nas mais rurais, um alto índice de abandono escolar. Uma percentagem alta dos nossos jovens, particularmente os rapazes, nas décadas de 1960 a 1980 não terminava o ensino secundário.
Hoje, essa realidade mudou. Temos, por todo o estado, homens e mulheres, nas faixas etárias dos altos 20, 30 e baixos 40, com os mais variados cursos universitários. Há gente de origem açoriana em todos os campos, desde o ensino à política, do direito à medicina, das ciências agrárias às letras. E nas comunidades rurais, é praticamente inexistente o abandono escolar, com que nos preocupávamos há 50 anos. As famílias açordescendentes começaram, já há alguns anos, a prezar o saber, a incentivar os filhos para o ensino superior. Começamos a ver, e ainda bem, quem não se preocupa somente com o curso superior do seu rebento, mas até com a universidade onde o filho ou a filha irá estudar. As nossas comunidades estão repletas, e estarão ainda mais daqui a meia dúzia de anos, de jovens adultos formados nas mais prestigiadas universidades da Califórnia (do país e do continente norte-americano), com cursos variados e, esperemos, com outros patamares culturais. Porque nem só de um diploma vive a humanidade! Até porque diploma (o dito canudo como se usa na gíria popular em Portugal) sem cultura, digase, a bem da verdade, é uma grande chatice.
São esses membros da nossa comunidade que temos de cultivar, porque o futuro está neles. Será esta juventude que manterá, de uma forma diferente, entendase, o nosso legado cultural. Não tenho dúvidas que teremos a curto espaço de tempo uma comunidade dissemelhante, como não tenho dúvidas que se conseguirmos enfrentar esta realidade, refleti-la e trabalhála, teremos garantida a preservação da cultura açoriana neste colossal estado, e um pouco por todos o território americano e canadiano.
Esse homem, e essa mulher, as novas comunidades, estão a nascer, quotidianamente. Todos os anos muitos jovens aparecem, ou, infelizmente em alguns casos, estão à margem das nossas comunidades, com formação académica e conscientes do seu legado cultural. E estas novas gerações estão já a mudar a nossa comunidade. Daí que há que entendêlos. Há que respeitar as suas formas de fazer comunidade, de sentir o seu legado cultural, porque o sentem, mas manifestamno de uma forma dissimilar do que muita gente nas nossas comunidades está habituada. Esse é um problema que não sabemos como enfrentar: temos gente que tem muito valor, porém está, em termos de comunidade de hoje e comunidade de amanhã, completamente ultrapassada. E por vezes são, não há que poupar palavras: um entrave, porque há muito que se consideram insubstituíveis e há muito que vivem a comunidade que já não somos. E para não se ofender esses egos e esses santos de altares de barro, até mesmo as algumas entidades diplomáticas portuguesas e políticos nacionais e regionais, lhes prestam vassalagem. É caricato e não esperem que os jovens entrem nesse mundo.
Com cada dia que passamos é imperativo que peçamos aos que ainda ficam pelas comunidades que tenham a ousadia dos seus pais, ou dos seus avós, mas com paradigmas diferentes. A audácia dos jovens é essencial para mudar a comunidade. Os seus pais e avós tiveram coragem em começar iniciativas que faziam sentido, e eram absolutamente necessárias há meio século, mas hoje estão completamente ultrapassadas. Os jovens de hoje terão de ter a mesma coragem e transformar as comunidades, trazêlas para o século XXI, para o multiculturalismo californiano. Relembro-me uma bela história contada por um amigo meu, que há uns vinte anos atrás, foi de visita aos Açores e frequentou, com um irmão seu, uma missa numa das nossas freguesias. Achou o sermão um bocado reacionário e perguntou ao irmão: “o que achaste da homília deste Senhor Padre.” Ao que o irmão respondeu: “um belo sermão, perfeitamente adequado para o século XIX.” Em certos círculos, e locais, as nossas comunidades estão no mesmo caminho. Tradição sem inovação será uma tragédia para a nossa diáspora.
Porque temos falado em mudanças há já alguns anos, mas pouco ou nada se tem nada se tem feito, todo este processo é ainda novo e há ainda muito por descobrir. Dirseá, sem qualquer desassossego, que os jovens profissionais vão mudar as nossas comunidades e daí que há que lhes dar espaço. Se a comunidade de hoje não quiser compreender a comunidade de amanhã vamos perder ainda mais uma oportunidade de darmos o passo essencial para o futuro.
Os jovens profissionais das nossas comunidades não têm (e aqueles que se formarão nos próximos anos muito menos) paciência para a nossa saudadesinha doentia e constrangedora, para as longas reuniões cheias de repetições e lamentações, para uma cultura asfixiada pelo peso da tradição. Aqueles que se formam nas várias universidades deste estado (e de outros estados americanos e províncias canadianas) não têm tempo, nem estômago, para aceitar a nossa letargia em relação a entrarmos, definitivamente, na sociedade norteamericana, na multiculturalidade destes dois países e no caso específico da Califórnia de uma sociedade extramente progressista e inovadora. Os jovens com talentos, e com uma formação académica sólida, não têm pachorra, para sustentarem as pequenas idiotices que ainda persistimos em confecionar. O mundo deles, que será o mundo das novas comunidades, está alicerçado, na promoção do nosso legado cultural dentro do mundo americano e canadiano e não num gueto social ou físico. Eles são homens e mulheres formados neste lado do atlântico, os seus estudos foram feitos dentro das universidades americanas e canadianas, e não à margem delas. Daí que só entendem a nossa comunidade numa plataforma de igualdade com os outros grupos étnicos que constituem o multiculturalismo destes dois países. Como já o disse e escrevi, a nossa herança cultural tem de estar nos mundos americano e canadiano e os homens e mulheres ligados aos mais variados ramos das artes, do estudo, do conhecimento, das ciências, do ensino, das novas tecnologias, do empreendedorismo, da agropecuária, entre outros campos, têm de se sentir parte da comunidade, membros integrados da nossa Diáspora, sem qualquer reticência.
Vejo, repito, num futuro não muito longínquo, uma comunidade diferente da que hoje temos. Aliás, os sinais são mais do que evidentes. Em muitos acontecimentos, para além da festa do Divino, veem-se os pais, ou os avós, mas já não se veem os filhos ou os netos. Como ouvi algures: Não se pode permitir que a tradição se interponha no caminho da inovação. É necessário respeitar o passado, mas é um erro venerá-lo.
A comunidade em construção, e será sempre uma comunidade em construção, será composta por mulheres e homens arquitetados na formação académica americana e ligados à sua cultura por gosto, não por necessidade. Uma comunidade com estes novos profissionais que na língua em que se sentem mais à vontade, o inglês, por vezes salpicado com vocábulos e breves frases em português, construirão a série de pontes entre o legado cultural dos seus antecessores, pais, avós ou bisavós, e o mundo norteamericano.
