Uma vela acesa na escuridão

 

Um Homem especial fez dia 9 de junho, 100 anos! Trata-se de uma figura maior do espaço habitado que é a língua portuguesa e as suas culturas, elo nobre da ligação entre os seus povos.
O Padre João Felgueiras, nascido em 1921 nas Taipas, Guimarães, estava no Colégio da Companhia de Jesus, em Cernache, quando o Padre Provincial lhe propôs a ida para Timor, para onde partiu em dezembro de 1970 e chegou em janeiro de 1971.
Foi vice-reitor do Seminário de Díli entre 1971 e 1975, altura em que fechou por causa da guerra. Teve então nas mãos a hipótese de sair e colocar-se em segurança, como fez a maior parte do clero, mas escolheu, juntamente com outros três jesuítas, ficar ao lado daquele povo na caminhada de martírio que então começava.
Estando Timor isolado do mundo, as primeiras informações sobre o que se passava com a invasão indonésia em dezembro de 75, em particular sobre o número de mortos, chegariam a Portugal e ao mundo através de cartas suas. As autoridades indonésias tentaram expulsá-lo, desconfiados da sua ação, sobretudo na formação dos jovens, e, quando saiu em 1986 em viagem a Roma e Portugal, tentaram impedi-lo de regressar, para seu pesado sofrimento. Mas o seu amor ao povo timorense e a sua resiliência foram mais fortes, acabando por voltar.
Foi um baluarte de fé, de humanidade e de cultura durante tempos de obscurantismo e desespero. Em 1978 reabriu o Seminário de Díli com o Padre José Martins, mas, como tinham falta de professores, associaram-se ao Externato de São José (ESJ), com o apoio do Administrador Apostólico D. Martinho da Costa Lopes, passando os seminaristas a frequentá-lo, num modelo inovador de ensino misto para religiosos. A colaboração funcionou nos dois sentidos, e os padres fortaleceram o corpo docente da escola, ensinando várias matérias, entre Religião e Moral, História, Filosofia, Português e outras línguas europeias. Numa altura em que a as autoridades procuravam de todas as formas indonesiar os timorenses, forçando a integração, este acordo estratégico com os Padres Leão da Costa e Domingos da Cunha deu força à única escola que persistia no ensino em língua portuguesa e de uma cultura mista como elementos distintivos da identidade cultural timorense, instrumentos cruciais da rejeição da indonesiação e da luta pela independência. A escola foi a quarta frente da Resistência timorense, a Frente Cultural, para o que muito contribuiu a ação do Padre João.
A sua colaboração como professor foi decisiva para a qualidade do ensino e, sobretudo, para a formação de uma consciência política e identitária timorense. Estão vivas na memória dos antigos alunos as suas aulas de história, em que lançava exigentes desafios de reflexão sobre a situação dos timorenses no quadro da história e cultura universais. Os testes de final de período a que tive acesso comprovam-no. Além disso, era corajosa a sua exortação aos jovens: “preparem-se para um dia tomar conta dos destinos da nação”. Muitos referem o papel que teve na formação em dinâmica de grupos dada à comunidade Maranata, que esteve na base do ESJ, e outros as reflexões em grupo ao fim de semana, onde aprofundavam o sentido patriótico e a consciência social.
Além do papel que o ESJ teve na preservação da língua portuguesa e da cultura luso-timorense, foi grande o impacte que estudantes e professores tiveram na luta pela independência. A este nível, direta e indiretamente, o papel do Padre João foi importante, apoiando e aconselhando os jovens, mostrando ao mundo as violações dos direitos humanos pelos militares indonésios, mobilizando personalidades externas para a causa de Timor. O seu nome de código da Resistência, em tétum, diz tudo sobre a sua entrega abnegada: hadomi (amor).
Em 2001 tive a honra de o conhecer, tendo passado muitas horas a ouvi-lo na casa da Comunidade ou no CJPAV. Gostaria um dia de escrever, academicamente, sobre o trabalho que vem dedicando à educação em Timor-Leste, quer com a Escola Amigos de Jesus, quer com o Fundo de Ajuda Caritativa e Social da Companhia de Jesus, apoiando centenas de jovens.
O ar místico, a bondade, a cultura enciclopédica e a clareza, muitas vezes metafórica são uma iluminação da razão e do coração. Impressiona o seu amor aos povos de língua portuguesa, em especial aos timorenses, cuja sensibilidade e espiritualidade não se cansa de designar como “um diamante”. É em Timor, que nunca abandonou, o melhor representante de Portugal e em Portugal uma força motriz do amor dos portugueses a Timor.
Por tudo isto ouvi várias pessoas, algumas ligadas à Resistência, afirmarem que nos tempos sofridos da ocupação, quando se sentiam sós e abandonados pelo mundo, a sua presença em Timor era uma luz de esperança, “uma vela acesa na escuridão”.