Estamos em plena época estival. Quem tem alguma capacidade económica está a banhos; os menos abonados e com direito a férias permanecem nas suas residências porque o dinheiro não chega para tudo. A restante população do país continua a trabalhar para sobreviver, ou à procura de emprego. Até aqui, nada de novo, tudo parece seguir o figurino habitual da estação do ano.
Pensando ainda no habitual do Verão, e este ano também já ocorreu, temos os fogos florestais, nalguns casos atingindo mesmo dimensões apocalípticas, como os de junho de 2017, em Pedrógão Grande, que, segundo a imprensa, fez pelo menos 64 mortos diretos, mais de 250 feridos e cerca de 500 milhões de euros de prejuízos; e os de outubro do mesmo ano que, na Região Centro, a imprensa noticiou como tendo provocado a morte a 50 pessoas, 70 feridos e destruição total ou parcial de cerca de um milhar e meio de casas e mais de 500 empresas. Foi o ano dos maiores incêndios florestais de que há memória. As populações que sofreram na pele esta tragédia nunca mais a esquecerão, como ficou bem patente no discurso pronunciado nas cerimónias do 10 de Junho deste ano pelo bombeiro Rui Rosinha, uma das vítimas do incêndio de Pedrógão.
Na altura falou-se imenso de fogos e da necessidade de reordenar a floresta mas, pelo que aconteceu nos anos seguintes, parece que pouco mudou. Quem anda atento às notícias fica com a impressão de que de outono de um ano ao início da primavera do seguinte, pouco se fala de fogo na floresta; por abril ou maio, o tema volta à comunicação social; fala-se das tragédias passadas e das que provavelmente o futuro trará - há sempre alguém, principalmente a comunicação social mais alarmista, que insinua que o fim do mundo pelo fogo está para chegar no verão - e fica-se à espera do que virá. No fim da chamada “época dos fogos”, as entidades competentes fazem o balanço em cuja conclusão manifestam o desejo de que o ano seguinte seja o melhor possível. Entretanto, em termos de reordenação da floresta, para a tornar mais resiliente aos fogos, parece nada acontecer. Esperemos que esta inação seja apenas aparente e efetivamente esteja a ser posta em prática uma política florestal visando tornar a floresta portuguesa mais resiliente ao fogo.
Desde 2022, para além dos fogos florestais, outra realidade passou a ser objeto das nossas preocupações na época estival: a guerra, a Guerra na Ucrânia, isto é, uma guerra na Europa, realidade que o cidadão comum europeu pensava ser impossível, embora, nos anos 1992 a 95, tenha assistido a uma nos Balcãs, resultado do desmembramento da Jugoslávia de Tito. Em 2022, o que parecia impossível aconteceu: no dia 24 de fevereiro as Forças Armadas da Federação Russa invadiram a Ucrânia e as notícias desta guerra nunca mais desapareceram da imprensa; praticamente todos os serviços de notícias falam de bombardeamentos, mortes, feridos, destruições, de declarações dos políticos russos ou ucranianos e seus respetivos aliados. Embora o teatro de operações seja longe de Portugal, os portugueses acompanham o que se passa a par e passo.
A Guerra da Ucrânia, contudo, não é a única que suscita as nossas preocupações. A 7 de outubro do ano passado quando, numa a ação terrorista, o Hamas e outros grupos palestinianos invadiram o sul de Israel, mataram mais de mil civis israelitas e mais de 350 soldados e polícias, e fizeram cerca de 250 reféns. Seguiu-se o reacender do conflito israelo-palestiniano com uma intensidade tal que fez passar o conflito russo-ucraniano para segundo plano.
Desde a fundação do Estado de Israel, em 1948, por resolução da ONU, o conflito do Médio Oriente teve o seu início e parece não ter fim. Os israelitas sabiam que iam ser invadidos quando o seu estado fosse proclamado e preparam-se para se defenderem; foi, portanto, um estado que nasceu sob ameaça de destruição, e preparou-se para resistir. A aceitação do novo estado por parte dos países vizinhos, por sua vez, não tem sido fácil e alguns mantêm a esperança de o eliminar, tendo-se gorado todas as tentativas até agora feitas para encontrar uma solução aceitável por todas as partes. Sempre que o processo parece bem encaminhado, há um “percalço” provocado por uma das partes ou por alguém e volta tudo à estaca zero. Para alguns o conflito só terminará com a eliminação do Estado de Israel, o que parece inaceitável para o lado dos israelitas, porque o fim do Estado de Israel seria para os judeus o regresso à vida do “judeu errante” e o avivar da recordação da “Solução Final” hitleriana. A “Passividade” com que o povo judeu viveu à Shoah, o Holocausto, não é hoje aceite pela maioria do “Povo da Promessa”. Não se pense, contudo, que o conflito israelo-palestiniano é religioso. Não é; é antes de tudo um problema social, porque antes da religião está a cidadania, o cidadão, a convivência cidadã, o encontro de pessoas, seres de relação, e a relação social implica sempre, como Paul Ricoeur tratou largamente num dos capítulos do seu livro Soi-même comme un autre [Paris: Les Éditions du Seuil, 1990], um certo grau de conflitualidade, conflitualidade antes de tudo social, como brilhantemente mostra Jonatham Sacks, no livro Não em Nome de Deus. Como Explicar a Violência Religiosa [Porto Salvo: Edições Desassossego, 2021].
Com duas guerras tão próximas de nós, com um verão quentíssimo e a ameaça dos fogos, com uma situação económica desfavorável a tanta gente, como pode o cidadão comum viver a época estival com um mínimo de paz de espírito?
Ao ler estas observações que acabo de fazer, alguns dos leitores dirão para consigo: vai começar “o discurso moralista”. Da “moralina” podemos libertar-nos ficando calados, o que não significa que nos livramos da moral. Se nos livrássemos dela, deixaríamos de ser humanos. Viver humanamente é ponderar diversas opções e escolher um caminho para agir; é, em suma, confrontar-se com valores (e entre estes, os morais ocupam lugar cimeiro), e decidir como atuar. Se assim não for, onde estará a nossa humanidade, a nossa dignidade? A moral não é um simples conjunto de regras sociais de boa educação, de “politesse” (polidez), como dizem os franceses [COMTE-SPONVILLE, André - Petit traité des grandes vertus. Paris; PUF, 1999], é a vivência da nossa humanidade, para a qual mesmo as regras da etiqueta não são de desprezar; podem funcionar como ponto de partida.
Votos de bom Verão.