Ovatyilongo — um raio de luz entre chamas

             

Na altura em que Jorge Arrimar publicou Ovatyilongo, o seu primeiro livro de poemas, e que na língua lhaneca quer dizer «Gente da terra», Angola avançava decisivamente para o caos. Já se desenhavam, e com muita apreensão, os traços de conflitos armados entre a UNITA, MPLA e FNLA. Infelizmente generalizaram-se no decurso de 1975, propagando-se por todo o território nacional. Tornar-se-iam numa catástrofe sem paralelo na História de Angola. A guerra civil, e que se estendeu por 27 anos, causou mais de 500 mil mortes e cerca de 1 milhão de deslocados internos. Neste confrangedor balanço não contabilizamos o número daqueles que abandonaram o país em massa (sobretudo angolanos de origem europeia e portugueses então radicados em Angola) antes da Independência, a 11 de setembro de 1975. Esta hecatombe contribuiu para que se fragmentasse o seu tecido social, acentuando feridas e rancores étnicos, alienando enfim a identidade de um país que nascia após 500 anos de administração portuguesa.
Ovatyilongo, convém reafirmar, surgiu num momento de muita apreensão. Para isso contribuiu grandemente a narrativa política, que não se expressou de forma tecnocrática mas sob a influência de inflamados exercícios retóricos. Era visível a acentuada disparidade ideológica entre os três movimentos, bem como a sua idealização. Em consequência disso, nas ruas o ambiente social ia revelando cesuras que tendiam a agravar-se. Por outro lado, se o 25 de abril pusera cobro ao pesadelo que era a Guerra Colonial, a descolonização, em contrapartida, revelava graves falhas na sua execução, e uma óbvia incapacidade dos seus responsáveis em geri-la e levar a bom termo a complexidade do seu processo. Num ápice, a instabilidade generalizou-se, contribuindo irreversivelmente para uma incontrolável disforia no psíquico da população, criando profunda angústia, insegurança e incerteza no futuro.
Num palco de guerra um livro de poesia pode ser visto como um ato de resistência frente à barbárie e à loucura. Um facho de luz na noite profunda. Neste âmbito, uma das virtudes mais notáveis deste primeiro livro de JA é precisamente isso — um canto da alma cuja expressão lírica infere os nobres valores do afeto, dirigindo o olhar em direção ao outro, respeitando a sua dignidade, lançando também à terra, generosa mãe comum, as sementes da concórdia e da ternura.
No enquadramento em que Ovatyilongo se insere, em termos temáticos, bem como na sua conjetura histórica, digamos que é, no mínimo, comovedor. Quem abraça a fragilidade daquilo que é intrinsecamente belo, sobretudo em tempo de cólera e irracionalidade, e se não há força humana capaz de travar a loucura dos homens em certos momentos (sobretudo históricos), que fique pelo menos registada na pedra das utopias a voz daqueles que festejam a vida. Este livro de JA pode ser visto como um instrumento aglutinador nesse sentido.
Em 1975 Jorge Arrimar era um jovem do Sul com uma vivência muito profunda em relação aos valores sociais, linguísticos e etnográficos da terra onde nasceu, a Chibia. Daí se ateou a sua inspiração poética. Aprendeu a língua, costumes e tradições com genuíno interesse, inspirado pelos valores do respeito pelo povo, adotando-o como genuinamente seu. A cor da pele não obstou essa ligação cultural e étnica. Para um humanista como o autor, nem sequer se colocava essa questão, levantada apenas por aqueles espíritos que se movem, com o cinismo do costume, nas obscuras vagas dos tempos.
Volvidos muitos anos sobre esse período, e outras, múltiplas publicações de entremeio, para se compreender a poética de JA, (e a inerente evolução criativa e técnica) temos que, inevitavelmente, regressar ao âmbito desse primeiro livro. Aí encontramos a singularidade da sua voz, intrinsecamente marcada pelos mecanismos que o rodeiam. Ao contrário daquela poesia que poderíamos classificar como experimental, a de JA sustenta-se da sua trajetória no impreterível calendário das suas experiências por diversas geografias e inerentes culturas. 
De facto, o autor, após ter saído de Angola em 1975 como refugiado, estabeleceu-se respetivamente nos Açores, Macau e Portugal continental.
 Ovatyilongo não é o resultado de uma experiência lírica datada e saudosista. Sem exagero podemos afirmar que tem a virtude de se destacar como um dos mais genuínos e singulares livros de poesia publicados em Angola. A génese discursiva desse primeiro e importante livro sustenta-se do afeto e conhecimento etnográfico e linguístico que o autor extrapolou do Nhaneca (Sul), daí recorrendo ao uso de termos e frases do vocábulo da língua bantu, por exemplo. Não é por acaso que essa primeira edição de autor vem com o prefácio do Padre Carlos Estermann, etnólogo e antropólogo germânico que se estabeleceu em Angola em 1924, após ter completado estudos de Filosofia em Knechtsteden, Alemanha, e teologia em Paris. Faleceu em Angola em 1976 aos 80 anos de idade.
Em 2010 Ovatyilongo conhece uma nova edição, mas com uma variante: desta vez os poemas originais são apresentados em fac-símile. O autor, em justaposição aos originais, introduz novos poemas. Há uma espécie de diálogo entre ambos, estes já observando os processos e avanços estilísticos atuais do poeta e que a inevitabilidade do tempo e a maturidade literária acentuaram, contribuindo para a escrita demonstre novos processos no que diz respeito a domínios expressivos e criativos. Um segundo prefácio do sociólogo José Carlos Venâncio se acresce nesse volume, e em complemento ao primeiro. Desta vez a edição é publicada em Luanda pelas conhecidas Edições Chá de Caxinde. Destacamos esta iniciativa editorial como um reflexo do reconhecimento do seu responsável, Jacques dos Santos, pelo trabalho de JA, juntando-se a este por aquilo que poderemos considerar um gesto também de homenagem aos povos a quem o então jovem autor exaltou a sua cultura e rituais.
É certo que o frequente recurso aos vocábulos bantus nos poemas compromete a fluidez da leitura, obrigando o leitor a consultar amiúde as notas de rodapé. Mas este processo de leitura que JA nos propõe é o de nos remeter para uma dimensão etnográfica (e até antropológica) do sujeito, dinamizando os meandros étnico culturais, a sua estrutura histórica, num enfoque que celebra rituais e os eleva a um patamar hedonista e celebratório da vida. O autor tem ainda o cuidado de inserir, no final do livro, um guia prático sobre a leitura das palavras bantus que introduz no discurso poético. Afigura-se-nos pois que é inédita esta conceção criativa, vista ao contrário: harmonizar duas línguas num abraço poético, ao mesmo tempo que nos educa e dá visibilidade a um povo que o autor, informado e atento, reclama também como seu.
Quarenta e nove anos decorridos sobre a data da sua publicação, Ovatyilongo representa um marco e um lamento no contexto histórico de Angola, sobretudo visto por aqueles que estão de fora. A geração do autor foi, sem dúvida, a geração traída pelos antagónicos ventos das circunstâncias, aquela a que não foi dada a oportunidade de ser visível na sua demonstração de angolanidade, culta e interessada que era numa mundividência plural, abrangente e descomplexada na edificação de um país multirracial e multicultural. Ainda hoje se descobrem, aqui e ali, diatribes em vozes públicas que classificam os brancos angolanos de «colonos», como se a cidadania fosse algo intrínseco à cor da pele e não definível pelo nascimento, opção e identidade. Seria o mundo um lugar mais aprazível e justo se o direito à opinião não fosse irresponsavelmente usado por mentes facciosas e estéreis, cujos dislates e verborreias apenas propagam velhos clichés e patranhas demenciais.
O percurso literário de JA enriqueceu e diversificou-se muito. Além da poesia, publicou várias obras nos géneros da ficção e História. O seu mais recente romance, Cuéle — o pássaro troçador foi galardoado em Angola com o prestigiado Prémio de Literatura Dstangola/Camões. A notícia mereceu grande destaque no periódico Cultura - Jornal Angolano de Artes e Letras.
Longos foram os anos até a este momento, numa Angola muito atribulada e ainda cheia de feridas e à qual se regressa através dos livros. No fundo eles são, mesmo que simbolicamente, a mão que volta a página, ansiosa e expectante, de novas e promissoras venturas. Que este Prémio, justamente atribuído a JA, configure tudo isso.
 Através do sortilégio da literatura chegamos ao conhecimento do outro, à sua natureza, ao que nos liga e nos separa neste imenso corredor de sombras que é a vida. O dedo que nos aponta as circunstâncias como um destino incontornável, nos cega os princípios e as alternativas, nos dobra as convicções e as utopias, confunde a esperança. Não vamos por aí, apesar do ruído. Consciência (conscientia) é conhecimento compartido, e sentimento comum é compaixão, salientou Unamuno. 
Ovatyilongo é a voz de um jovem que cresceu entre palavras, e com elas abriu algemas enquanto ouvia os cânticos matinais de um povo ao qual se juntou em redor do fogo que clareava a noite. Lê-lo hoje, com o mesmo espírito de assombro e ternura, é regressar a um tempo de magia. É voltarmos a repartir o pão de outros dias, e dar água à poesia, nostálgicos mas serenos de um tempo que ficou em páginas que envelhecem, nobres e serenas, nas nossas estantes. São palavras antigas como árvores nas imensas savanas do Sul, falando de nós como testemunhas daquilo que somos, na certeza de que somos nós, como sempre fomos, fiéis aos mesmos princípios, aqui e em todo o mundo, mesmo atravessando tempestades.