A ilha do meu quintal

             

Cruzei-me com uma senhora que saía do carro num luminoso dia de Abril. Segurava um delicado novelão. A memória da ilha, nas suas mãos, atraiu-me. Era uma senhora alta, esbelta, e de olhos oceânicos. Sobre os ombros escorria o manto diáfano de uma extraordinária cabeleira loira com traços de cinza. O outono, inexorável, aproximava-se do seu corpo como uma sombra.
– Desculpe!
Interpelei-a antes que entrasse em casa e desaparecesse para sempre. Voltou-se surpreendida. Que quer este homem?, deverá ter pensado. 
Perguntei-lhe onde tinha comprado a planta. As rugas da testa distenderam-se e o olhar perdeu a dilatação das surpresas mal-recebidas. Amável, indicou-me, sorrindo, o nome da loja. 
Estava prestes a alcançar a esquina quando um voz soou atrás de mim. Era a senhora dos novelões.
Fique com estes, tenho mais – disse, estendendo-me um saco plástico.
O sol matinal batia-lhe por trás, cintilante. Pareceu-me, por um momento, que o seu corpo flutuava no mundo. O seu esplêndido recorte, contra um fundo de luz, entrou nos meus olhos como um quadro de Matisse.
***
A minha mãe plantou-os no quintal, junto à parede de trás. 
A água da sua ternura tornou-os em duas magníficas plantas. No verão, o seu azul parece um novo céu, muito junto à terra. 
Mais tarde plantou, no extremo do canteiro, outro novelão. De cores nobres e rutilantes, parece proteger da impetuosidade da brisa um pequeno tufo de margaridas brancas. 
Nos longos dias de agosto, o pequeno jardim regurgita de vida e odores. Enquanto corto a relva reparo, de soslaio, nos novelões. As suas cores, que transcendem o imaginário, disseminam, dentro de mim, a energia da ilha. Na sua geografia emocional encontram-se registados, a sal e vento, os rostos dos meus antepassados maternos. 
Presto atenção à máquina quando passo pela macieira. O meu pai, agachado sobre a velhice, ajudou-me a plantá-la. A beleza foi sempre um lugar sensível e frágil. 
Apetece-me acariciar estas folhas húmidas, o seu delicado azul-lilás. Sequioso, levar aos lábios o nobre orvalho das suas pétalas antigas. Esse é, no fundo, o modo subtil de como se desce todos os degraus do tempo de regresso aos primeiros dias da nossa voz. 
Materna instância, o jardim.
Em dias ventosos julgo ouvir o mar entre os pinheiros. Ressoa de muito longe. Corre pelo quintal fora e perde-se no odor da erva cortada.
A memória, por vezes, hiberna no sonho. É o silêncio de todas as coisas. Os pequenos símbolos, grandes e múltiplos, são estátuas erigidas a tudo quanto amamos. Mesmo à distância. 
A ausência vivifica o itinerário das nossas vidas. Neste caso, os Açores. Um estado de alma. Transfigurados, os novelões do meu quintal ouvem os pássaros de Pitt Meadows. E assim vou acreditando que a ilha da minha mãe, navegando no peito da poesia, nasce todos os dias junto à parede da minha casa.

Pitt Meadows, 31 de Outubro de 2001

Breve nota

Ao desenterrar papéis velhos, guardados em caixas de cartão no escritório, e ainda desorganizados da minha última mudança de casa, deparei-me com esta crónica. Lia-a com melancolia.
Cumprir-se-ão 22 anos, no dia 31 de Outubro de 2023, sobre a data em que a escrevi. Se o mundo mudou muito desde então, a minha vida também. Já não moro na mesma casa. A macieira, em poucos anos, sucumbiu a uma implacável e súbita doença. Os filhos cresceram. Os meus pais ausentaram-se dos seus domínios humanos. Nunca mais voltarão.
O tempo, voraz e de uma imperceptível sofreguidão, foi marcado por surpreendentes derrocadas. Distraí-me. Acabei colhido pela insuspeitável invasão dos dias. 
Medito, sem remédio, nas sinuosidades do calendário. Que logro contraproducente! Um autor desconhecido fez esta pergunta lapidar: «Por que basta um minuto para se dizer olá, e uma eternidade para dizer adeus?» Por muito que reflicta, as complexidades do passado nunca ficam resolvidas. Há feridas, saráveis umas, outras não. Perdas. Triunfos do coração também. Do futuro nada sabemos, e é melhor assim. 
Os novelões, contudo, enfrentaram incólumes a renovação das estações –  desde o imenso fulgor da primavera à glacial brancura do inverno. Continuam a ser a ilha do quintal. As suas hastes, em dias solarengos, levantam-se ao céu. Magnânimas e quase irreais na sua extraordinária beleza, bendizem o milagre da existência.

 

Texto revisto em 11 de Outubro de 2023
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