A axila de Egon Schiele, de André Tecedeiro: a essência debaixo da asa

 

Afonso Cruz, em O vício dos livros, cita Wharton para destacar a ideia de que “a leitura é um diálogo entre autor e leitor e que, se não houver um abalo qualquer naquele que lê, então tudo será em vão. A leitura deve resultar numa transformação e um leitor deverá saber que aquele que abre um livro não é a mesma pessoa que o fecha.” (62) 
Mais adiante, usa o pensamento de Virginia Woolf para dizer que “um livro deve ser entendido como uma pergunta, e a leitura enquanto alimento não é uma resposta a coisa nenhuma, mas a inquietação necessária a uma resposta efémera.” (64) Ou seja: a leitura é “uma conversa entre nós e o mundo” (75).
Naquele início de manhã daquela sexta-feira, fechei, já outro, o livro que acabara de ler, ainda sugado pela magnitude dos poemas aí reunidos. A axila de Egon Schiele impactara a minha alma, mexera comigo. De facto, abalou-me. Porque é um livro sobre a lavagem espiritual por que todos ansiamos, por que todos queremos passar, mas que nem sempre pegamos pelos cornos. 
Esta coletânea de vários poemas de vários livros de André Tecedeiro (bendita, sempre, a curadoria da coleção “Elogio da Sombra”, da Porto Editora, pela mão de Valter Hugo Mãe!), esta coletânea, retomo, desnuda a verdadeira essência do poeta, confissão ao mundo da angústia do vazio de ser o que não é e de não ser o que é. Mas ali habita a coragem de, das cinzas de um interior destroçado, refazer constantemente as asas de uma fénix em recorrente renascimento. 
O tónico deste livro, o seu avassalante murro no estômago, reside no facto de ser a parede em que esbarramos por nos consciencializar de que há sempre hipótese de sermos felizes. Contra tudo e contra todos, somos o que somos, ainda que, ab initio, possamos realmente não o ter sido.
Neste livro, o estremecimento advém da insatisfação constante perante os caminhos que percorremos, advém da necessidade iniciante da mudança. Porque não somos sempre os mesmos; porque, ao longo da vida, as influências externas cambiam as nossas vontades, os nossos desejos, as nossas ideias, o nosso ser. Só que há quem se acomode; há quem não dê o passo para o voo seguinte, e viva rasante ao chão ou que nem dele saia.
Foi o exemplo de André Tecedeiro que irritantemente me interpelou. Não pela sua tenacidade (claro que não!), mas precisamente pela ausência da minha, tantas vezes apregoada. Dei por mim a perceber-me como incapaz de concretizar algumas posições em que acredito, de dar vida a algumas vontades de alterar estados da existência, de seguir percursos outros. Constatei que, por vezes, sou uma fraude de mim mesmo, que falo mais do que avanço. Sou, afinal, nesses casos, uma fénix de asas incineradas já ao (re)nascer… Sou, afinal, infiel às minhas convicções, desleal comigo próprio… Por isso, nessa sexta-feira (e noutra, e noutra, e noutra…), fui uma pessoa incomodada com o seu amorfismo. 
Pelo contrário, André Tecedeiro expõe, através dos seus poemas, essa sua capacidade de se ir reinventando ao longo da vida, de se ir renovando, para chegar ao mais fundo da sua essência. O título do livro anuncia esse propósito. De facto, a referência ao pintor expressionista Egon Schiele, célebre pelos seus autorretratos nus, é símbolo do desvendar da procura de si mesmo, através de poemas quotidianos, de uma sinceridade desmesurada, de uma profunda honestidade intelectual do poeta consigo próprio e com os leitores; são poemas clarificadores e, acima de tudo, reveladores da força interior transformadora. Poemas que são o verdadeiro reflexo das angústias, dos medos, das ansiedades do sujeito poético, mas, ao mesmo tempo (porque não se deixa enredar nelas, sucumbir por causa delas, como refere Valter Hugo Mãe na bandana do livro), poemas construídos como espelho também das suas pequenas grandes (e, quiçá) definitivas vitórias. E é, aqui, que simbolicamente entra a axila presente no título da coletânea. Parte do corpo usualmente escondida, a axila evidencia mudanças corporais, definições sexuais. Metaforicamente falando, encontramo-nos debaixo da asa da fénix, acolhidos em relação à força do impacto das mudanças interiores e externas, protegidos sob a(s) forma(s) como nos vemos, sob aquela(s) como nos queremos ver.
A axila de Egon Schiele não é apenas mais um livro. A sua leitura é obrigatória para que todos compreendamos que não há mal nenhum em darmos o passo em frente; que esse passo pode ser a génese do nosso bem-estar e do dos que nos rodeiam, porque passamos a estar bem com o que somos ou queremos. E, por isso mesmo, A axila de Egon Schiele é uma lição de diversidade, é uma lição de aceitação do outro e das suas conquistas, mas também da conformação com a própria natureza individual. 
Obrigado, Lurdes, por me teres apresentado este livro e o André, numa publicação no Instagram! Obrigado, Valter, por sempre fazeres escolhas acertadas em tudo o que escreves, publicas ou organizas!
Obrigado, André, pelo que és, pelo que conseguiste e pela inspiração para os outros!
A axila de Egon Schiele alimenta o espírito. Para quem quer passar por um livro e sair dele já um outro diverso do que nele entrou, é uma maratona de intensidade emocional e prova de que “[a]o atentarmos no mundo, ele ganha realidade” (Afonso Cruz, 72).
A axila de Egon Schiele: Imprescindível!

 

 

O rapaz que vai habitando os livros
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