Indisciplina indesculpável

 

Aprender é um precioso verbo que nenhum ser humano deve, de forma alguma, dispensar de conjugar diariamente ao longo da sua caminhada terrena. Aprender até morrer, foi coisa que sempre ouvir dizer. E digo mais, do que me costuma também lembrar um bom amigo nas nossas ocasionais e sempre proveitosas conversas – “quem tem a mania de saber (quase) tudo é porque não teve boa escola”. Por mim, julgo que tive e confesso ter ficado bastante agradado pelo facto de Professor ter sido eleita como Palavra do Ano 2023, em Portugal, segundo o expressivo parecer dos participantes nessa feliz iniciativa levada a efeito, ‘on line’, pela Porto Editora. Percebo que, por lá, tenha andado de boca em boca como justo alvo de contínuos protestos, todavia surge-me, por cá, como significativa escolha a bater-me simpaticamente à porta, devido a tratar-se da profissão exercida por dois dos meus três filhos. Um leciona Matemática e outro História. Ora, mais do que irrisórias estórias, episódios pertinentes não lhes faltam para me contarem das suas interessantes experiências profissionais diariamente enriquecidas pelo simples facto de poderem fazer a diferença para melhor em tantas vidas jovens com vontade de aprenderem. Aí está, aprender, a palavra que me apraz aqui realçar.
Um desses estranhos episódios, bem sintomático da turbulenta era que agora atravessamos (já tão diferente daquela que atravessámos com bastante mais rigor disciplinar então exigido nessas nossas escolas de há meio século), contou-mo o meu filho mais velho, para eu não contar a ninguém, na ocasião deveras chocado com o sucedido. Guardei-o e raramente o partilho, a não ser que o contexto me peça esse favor. Aqui acho que se enquadra. Ora bem, certo dia, às tantas, lá na sua sala de aula, coisa mais normal deste mundo na missão de um docente consciente da disciplina que lhe compete ali manter, sentiu-se na obrigação de repreender, adequadamente, um dos seus mais indisciplinados alunos (espigado rapazote de cor negra e altura suficiente para se enfrentarem quase cara a cara, olhos nos olhos) – “ou sentas-te e comportas-te como deve ser ou vais ter que sair para não prejudicares o aproveitamento dos teus colegas”. O meu filho é, felizmente, um homem mais alto do que o seu pai. Porém, sem lhe perder grande coisa no tamanho, o desavergonhado rapazola, em vez de se intimidar, como fazíamos nós antigamente, mal o senhor professor nos levantava a voz, teve mesmo o descaramento de lhe ripostar em inglês provocante e claramente desrespeitoso, “who do you think you are, niger? You’re not my father.” 
Peço que me poupem aqui esta afrontosa tradução e me deixem tomar fôlego antes de vos desabafar – ainda bem que aquilo não se passou comigo. (Isto, só por vir desse tempo em que faltar ao respeito aos mais velhos, ou aos nossos superiores, como dizíamos, era coisa absolutamente inadmissível e imperdoável). 
Acreditem que me custa imenso ver, hoje em dia, a sacrificada classe docente ter de andar (pelas ruas da amargura) praticamente a pedinchar, com insistentes protestos, esse tal respeitinho que tem vindo a perder sem merecer. Mais do que merecido é o orgulho que nutro pelo meu filho; pois, como ponderado professor (de pele branca), ter de ouvir o seu mal-educado aluno (de pele negra) chamar-lhe “niger”, essa palavra provocadora do piorio presentemente inflamando as escaldantes tensões racistas que envergonham este grandioso país, dá que pensar. E convida-nos a aprender. A vontade, num caso destes, em vez de engolir a afronta, seria talvez a de retribuir o insulto e ali derramar a sopa em tempo nenhum. Assim se estragam carreiras e arruínam reputações. Educar, no contexto escolar dos nossos dias, claro que requer muito mais sangue frio do que nessa extinta escola da era em que nos criámos, quando a severa ordem na aula se implementava, rudemente, à bolada por tudo e quase nada.
Ano Novo/Vida Nova, costumamos dizer, mas com a idade a caminhar-me apressada para os setenta, reciclo aqui o velho propósito de adotar o crucial verbo com que iniciei este texto como palavra chave para me guiar no percurso dos próximos doze meses, associando-me prudentemente às palavras do meu filho a lembrar-me sempre que recordamos este caricato incidente de indisciplina indesculpável – “pai, disponho-me sempre a aprender, mesmo enquanto estou a ensinar.” Por conseguinte, e já agora, neste ano de críticas decisões em importantes eleições afetando as nossas vivências luso-americanas, tanto lá como cá, torna-se essencial precavermo-nos contra os astutos “ensinadores”, nestas alturas, tão exímios em quererem quase “comprar” as nossas escolhas pessoais. 
Não toleremos que nos atirem areia aos olhos e informemo-nos com todo o cuidado de apreendermos o que precisamos, enquanto é tempo. Acho estarmos todos já bem fartos das lições mal estudadas que nos custam caro demais.