Não deixem de fazer planos. E não desistam de mudar o mundo

 

 

Horta, 8 de Junho

Esta tarde estava no Peter, a beber um gin, quando entrou um turista. Percebi que era português, embora não saiba dizer agora porquê. Tinha talvez 60 anos, uma barba bem aparada e um corpo alto e esguio, condição sempre invejável na idade dele. Mas aquilo que me chamou a atenção foi o seu olhar alucinado.

Vi-o entrar aos pinotes, como que enlouquecido, e contraí-me ao de leve. Só depois percebi ao que vinha. Nem sequer nos olhava directamente: olhava-nos através do ecrã do telemóvel. Nem por um instante tirou os olhos de detrás do ecrã do telemóvel. E fotografou.

Fotografou bandeiras e galhardetes, postais e guardanapos assinados. Fotografou mármores e expositores, apetrechos marítimos, scrimshaws. Fotografou mesas, cadeiras e pessoas, e fotografou sempre com aquele mesmo ar ávido de quem precisa de coleccionar e zarpar depressa, para ir coleccionar ao destino seguinte – sempre sem tirar os olhos do ecrã do telemóvel e parar a ponderar o lugar onde estava, ou a atmosfera que o constituía, ou que género de vida poderiam levar as pessoas que o frequentavam.

Tive esperança de que aquele fosse o seu primeiro dia de férias e ele ainda viesse stressado. Tive esperança de que houvesse acabado de chegar do Pico, de passagem apenas, e tivesse um avião para apanhar, não lhe restando mesmo senão acumular para tentar ver em casa. Infelizmente, não pude ignorar as calças que trazia.

Eu conheço aquelas calças.

As calças que aquele homem trazia, com um corte muito quadrado à anos 80, são as únicas calças de ganga que ele tem. Os sapatos ao fundo das calças que ele trazia, aqueles sapatos Rockport abrutalhados e démodé, são os únicos sapatos informais que ele tem. Estão há 35 anos no armário, eles como elas, e todos os Verões ele os vai lá tirar – para exercer o ofício das férias.

Conheço aquelas calças, conheço aqueles sapatos e conheço aquele homem. Aquele é o homem em que eu talvez me transformasse se não tivesse tido a sorte de poder voltar à vida simples. Aquele homem que trabalha o tempo todo e viaja o tempo todo e tem reuniões o tempo todo e, quando finalmente vai de férias com a família, anda nuns pinotes com o seu iPhone X e as suas calças de ganga antigas, a tentar abarcar o mundo em cinco minutos, e metê-lo todo no seu telemóvel, e levá-lo para casa, na esperança de um dia ter tempo para olhar para ele – aquele homem é o homem em que eu estava a transformar-me.

Há algo de cruel nisto, mas fez-me bem vê-lo hoje, com o seu olhar alucinado de solidão e infelicidade. Há semanas que, por razões de circunstância, ando a gozar da cidade e das suas delícias – podia sentir-me tentado.

 

Lisboa, 11 de Junho

Hoje perguntaram-me de uma revista a que chamamos cor-de-rosa, e a que me deu um prazer quase inusitado responder: “Se mandasse, que medidas tomaria para proteger os profissionais da escrita?” Respondi: “Educava as pessoas. Não é preciso darem subsídios aos escritores. Eduquem as pessoas e a literatura prosperará. Nenhuma pessoa educada é avessa à leitura.”

Respondi-o em abstracto, mas podia tê-lo respondido em concreto. Eu ainda acredito no poder da escola. Ainda acredito no poder da escola e, agora que esta coluna se encaminha para o seu final – esperam-me outros e auspiciosos espaços de intervenção no DN do futuro –, vale a pena repeti-lo, porque no fundo essa é a única verdade tão definitiva no campo como na cidade: a educação permanece a nossa melhor solução.

Ainda no sábado, na Terceira, voltei a ter exemplo disso. Depois de andar por todo o país, achei que devia recrutar as escolas da minha ilha para um manifesto comum à sociedade civil. Tenho visitado aquelas escolas e saído delas cheio de esperança. E ocorreu-me pedir-lhes que se encarregassem da apresentação do novo livro.

Queria, com isso, dizer duas coisas: que os livros continuam uma fonte tão privilegiada de formação como no passado (se não mais, vistos o ruído e a fragmentação a que as crianças e os adolescentes são hoje sujeitos); e que reside na nossa juventude mais massa crítica e mais responsabilidade do que aquilo que às vezes queremos reconhecer, no nosso afã de reduzir o mundo a uma realidade suficientemente módica para o podermos acondicionar no bolso durante os nossos compromissos muito mais importantes.

E eu gostava de poder dizer que o resultado final me surpreendeu – naquela sala, naqueles números de música e de teatro, na alegria como que se celebraram as letras  e a vida. Mas isso impedir-me-ia de dizer algo ainda mais importante: que, na verdade, era de esperar. Porque quem já se tenha detido a olhar aqueles miúdos e aqueles professores (todos os miúdos e todos os professores, suspeito) sabe que eles são capazes até de mais – de muito mais.

No fim, disse-lhe: “Não deixem nunca de fazer planos. E não desistam de mudar o mundo.” Porque, realmente, foi tudo o que aprendi até hoje, e também nunca foram sobre mais do que isso estas crónicas: é preciso fazer planos até ao fim – até ao último dia das nossas vidas; e é preciso não desistir de mudar o mundo –nem no último dia delas.

Talvez tivesse bastado darem-me só uma crónica para dizê-lo, afinal. Mas desconfio que, sem as escrever a todas, eu teria tido mais dificuldade em percebê-lo.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”