Manuel Adelino Ferreira – In Memoriam

 

O ano findo deixou marcas. E impô-las até ao último dia levando-nos o Manuel Adelino Ferreira, que durante décadas dirigiu este jornal. Nos últimos tempos, já praticamente alheio a tudo o que ao seu redor se passava, ao menos ainda era possível visitá-lo e esperar que conseguisse ouvir as notícias e palavras de amizade que lhe eram dirigidas. Tive mesmo a sensação nítida de que isso aconteceu na última vez que fui visitá-lo. Comecei a falar-lhe e os olhos abriram-se-lhe olhando-me fixamente durante todo o tempo em que lhe fui dando novidades, até sobre o Mundial no Qatar, pois ele era um apaixonado do futebol. Agora foi mesmo o fim. Ainda durante alguns anos reuníamo-nos para um almoço, um grupo que eu apelidava “de gerontologia”. Era ele próprio que organizava o ajuntamento telefonando cedo pela manhã aos amigos a fim de ter a certeza da sua comparência. O Manuel Calado, que ainda há poucos dias nos deixou, era o nosso patriarca. Como era natural, à mesa conversava-se muito do passado e o dele tinha sido uma notável presença na comunicação social, sobretudo no Portuguese Times, mas também no Portuguese Channel, bem como nos media açorianos e portugueses em geral, pois com frequência era chamado a intervir. (Claro que os desportistas reclamarão contra o facto de eu não referir aqui o seu relevante contributo à LASA - Luso-American Soccer Association - todavia estou convencido de que alguém mais informado do que eu sobre a matéria evocará essa faceta do MAF). Ele, porém, não falava nunca do seu trabalho. Modesto, não era dado a fazer alarde do seu contributo e préstimos.
Conheci o Manuel Adelino Ferreira na minha primeira viagem de visita aos EUA, em 1970. Um amigo costumava reunir na sua casa alguns dos mais ativos e  intervenientes membros da nova emigração que, a partir de 1965, graças ao Immigration Act desse ano emanado do Congresso, começou a afluir aos EUA. Convidou-me para um dos convívios. Desse pequeno núcleo de que já restam poucos, fazia parte o Adelino que, logo ali, me pareceu ser o mais minuciosamente informado sobre eventos sociais e políticos. Mas ele também sobressaía nas suas intervenções, sempre numa voz serena e medida, com uma preocupação pelo rigor que, no seu caso, era ajudado por uma excelente memória.
Essas facetas foram marca distintiva da sua carreira jornalística. Aos largos e resgados voos, preferia as frases comedidas, curtas e exatas, relatando fatos com precisão. Sem qualquer treino em escola de jornalismo, agia como se tivesse sido formado nessa área. A sua maneira de ser ajustava-se perfeitamente às exigências da comunicação que se preocupa com publicitar fatos seguros, filtrados pelo crivo de uma criteriosa análise empírica. Além disso, o Manuel Adelino Ferreira soube também escolher uma rede de colaboradores capazes de contribuirem para uma conversação nacional centrada sobretudo nos problemas da comunidade luso-americana. O conjunto dos jornais do Portuguese Times constituem um repositório de riquíssima informação e reflexão sobre a L(USA)lândia, graças à sua abertura de espírito e recetividade aos contributos da diversificada rede de colaboradores que ele atraiu para o jornal.
Depois de uma longa entrevista de vida que, a meu pedido, o MAF fez a Manuel Calado e que publiquei na revista Gávea-Brown, pedi ao João Carlos Tavares que, por sua vez, entrevistasse o MAF, pois interessava-me registar igualmente a sua experiência na comunicação social comunitária. Dessa longa entrevista, retiro uma passagem em que o antigo diretor do Portuguese Times conta como ocorreu o seu envolvimento com o jornal. Eis a narrativa nas suas próprias palavras:
Em janeiro de 1974 ingressei no Portuguese Times a convite do seu diretor, António Alberto Costa, que há tempos vinha instando comigo para que deixasse a WGCY e me juntasse à equipa do jornal. Ainda resisti, argumentando que o mais talhado para trabalhar no jornal seria o Manuel Calado, que na altura fazia um part-time na estação de rádio WGCY e que estava desempregado por o Diário de Notícias ter cessado a publicação. “O Calado, com a sua vasta experiência jornalística, seria o ideal”- argumentei junto do Sr. Costa. “Que não. Quero-o a si, quero gente mais jovem para o projeto que tenho em mente” - retorquiu. A minha ligação ao Portuguese Times já vinha de longo tempo, muito antes de o Sr. Costa ter adquirido o jornal e o ter trazido para New Bedford, primeiro para a Fernandes Plaza, no nº 152 do Rodney French Boulevard, antes de se transferir para instalações próprias, adquirindo um prédio onde funcionava a loja de mobílias “House of Chairs”, em 61 West Rodney French Boulevard (hoje Cidade’s Sunoco), na esquina da Cove Road. Eu era o correspondente do Portuguese Times em New Bedford quando o jornal ainda estava em Newark, NJ. Augusto Saraiva era o seu diretor. Até que cedi ao insistente pedido do Sr. Costa e fui para o jornal, onde encontrei o Eurico Mendes, a Donzília Sousa, que viria a ser a esposa do Sr. Mendes; o Raimundo Canto e Castro que, pouco tempo depois, deixava o Portuguese Times para estabelecer O Jornal, em Fall River. Mais tarde, Eurico Mendes e Donzília Sousa largaram o Portuguese Times para se juntarem a O Jornal, deixando-me praticamente só, a fazer o jornal, mais a Natália Carreiro, linotipista, que fora admitida quando eu fui. Foi nessa altura que foi admitido João Medeiros, um imigrante caboverdiano que trabalhara para o governo colonial na Guiné e que residia em Rhode Island, como exilado político. O homem fumava constantemente e recordo-me de uma vez, por descuido, ter deitado fogo ao cesto dos papéis, que começou a arder sem que ele se tivesse apercebido. O Sr. Costa nunca aderiu aos ideais da Revolução de Abril e era um spinolista convicto, dando relevo aos artigos da extrema direita, como eram os escritos de José Gama, ex-funcionário do Ministério da Justiça do regime anterior ao 25 de Abril, que fora saneado e, auto-intitulando-se exilado político, residia em Connecticut, onde um irmão dele era padre. Pois foi José Gama que o Sr. Costa escolheu para dirigir o jornal quando ele conseguiu empregar-se na Voz da América, em Washington, DC. O Sr. Costa transformou o Portuguese Times numa empresa familiar pois, além da esposa, Helen “Nina” Costa, empregava também a sogra e dois filhos do primeiro matrimónio, Carlos e Luís Costa. O Carlos cedo deixou a empresa para se estabelecer por conta própria, numa bem sucedida firma de negócios financeiros, mas o Luís ainda continuou por mais uns tempos ligado ao jornal, fazendo a montagem de anúncios, embora o seu conhecimento de português fosse muito limitado. Entretanto, para fazer face às despesas, o Portuguese Times cedeu as suas instalações e equipamento a Tom Lopes para a publicação do Cape Verdean Times, um semanário destinado à comunidade caboverdiana. O Portuguese Times continuou até meados de 1979, nas instalações em 61 W. Rodney French Blvd, altura em que Eduardo de Sousa Lima, proprietário da agência de viagens Piques, adquiriu a António Alberto Costa as ações que este detinha na empresa Portuguese Times, Inc., o correspondente a ¼ do total, sendo os restantes três acionistas Joseph Fernandes, Richard Aldrich e João Rocha, de Lisboa, amigo de Aldrich, que se juntou mais tarde à empresa. Uma das primeiras decisões tomadas por Eduardo Lima foi a substituição de José Gama, que auferia um elevado salário, incompatível com as finanças do jornal, por mim, na direção do jornal, seguindo-se a venda do edifício que era demasiado grande e nada eficiente. Consumada a venda, o jornal mudou-se para o norte de New Bedford, alugando duas lojas de um prédio localizado na esquina da Acushnet Avenue e Nash Road (Nº 1709) propriedade de José Esteireiro, dono do Bel-Art Studio. O Portuguese Times passou a ter uma estrutura mais profissional. Os serviços administrativos passaram para a responsabilidade de um contabilista profissional, Gary Emken, coadjuvado pela secretária Idalécia André, continuando Tom Lopes a publicar o seu Cape Verdean Times. Adquirimos novos e modernos equipamentos para substuiir as duas velhas e obsoletas Compugraphics utilizadas na composição, bem como uma nova tituladora. Para aproveitar o equipamento disponível, passámos a fazer trabalhos tipográficos, o maior dos quais foi o livro Ilhas de Cabo Verde, da autoria do padre Bernardo P. Vaschetto, O. F. M. Cap., um volume de quase 700 páginas. Entretanto, alugámos as instalações e equipamento a Edirson Paiva, responsável pelo jornal Brazilian Times, que continuou ligado ao Portuguese Times por três ou quatro anos até se tornar independente. O jornal continuou nas instalações em 1709 Acushnet Avenue, nos princípios da década de 80 do século passado, até se mudar para sede própria, em 1501 Acushnet Avenue, esquina da Coffin Avenue, na antiga loja de calçado Champengy Shoes, adquirida por Eduardo Lima, onde ainda hoje se encontra. (A entrevista foi publicada no nº 43 da revista Gávea-Brown, em 2021, e merece ser lida na íntegra. Está disponível online no seguinte endereço: https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:rff4p58q/
Escrevo de S. Miguel, a ilha natal do Manuel Adelino Ferreira, que ele visitou pela última vez há um ano e maio. Vários amigos deslocaram-se propositadamente (alguns vieram do Continente) e juntámo-nos num restaurante da Lagoa em amistoso convívio. Foi um momento que o MAF conseguiu recordar vividamente em conversas posteriores, sem esquecer os nomes dos presentes.
Impossibilitado de comparecer no funeral, eu não poderia de modo nenhum deixar de compensar a minha ausência com esta manifestação pública de apreço pelo legado de um fiel amigo que estimei de verdade.
A comunidade luso-americana está mais pobre, contudo ele fica por sinal bastante presente no meio de nós visto pouca gente ter conseguido deixar tantas páginas impressas que guardam a marca do seu dedo sensato, atento, criterioso e justo.
Descansa em paz, meu caro Adelino.