Memórias de um (António) Cirurgião plástico da palavra

 

Faz já alguns anos que a Imprensa Nacional vem publicando uma coleção de livros de autores provenientes da diáspora lusa. A iniciativa pertenceu a Augusto Santos Silva, quando Ministro dos Negócios Estrangeiros. Ocorreu-lhe a feliz ideia  de tornar conhecidos em Portugal alguns dos muitos autores que por esse mundo foram vão escrevendo em português livros que refletem as suas experiências de vida nos seus países adotivos. A coleção ultrapassa já as duas dezenas, sem todavia ter atingido o objetivo de captar a devida atenção da comunicação social. São diversas as razões, incluindo a de em Portugal se badalar muito sobre a nossa presença no mundo e a suposta lusa universalidade, embora isso na prática se traduza em pouco quando se trata de autores da diáspora. As exceções – e não se trata aqui de nenhuma amargura pessoal pois na verdade não tenho razões de queixa - só confirmam a regra.
Aqui fica uma brevíssima lista de livros que bem mereceriam ser largamente lidos pelos portugueses permanecentes na pátria, sem se juntarem aos milhões que ao longo dos séculos foram para fora viver um Portugal hifenado: Memórias de um Cientista – de Estalinegrado à Covid-19 – ou a Luta entre a Ciência e as Trevas, de Manuel Paiva, a autobiografia de um grande cientista português com uma história de vida notável associada à Universidade Livre de Bruxelas - onde lecionou durante toda a sua carreira - e à Agência Espacial Europeia; Mar e Tudo e Outros Casos, o livro de contos luso-americanos de José Francisco Costa; as autobiografias luso-americanas A Porta Aberta de Laurinda de Andrade, e No Fio de uma Vida: Odisseia Luso-americana de Francisco Fagundes. Isto para só mencionar alguns dos livros da coleção dentro do género memorialista, ou próximo, pois ela inclui também ficção e poesia, de que saliento, a título de exemplo, o livro de poemas Cântico sobre uma Gota de Água do luso-canadiano Eduardo Bettencourt Pinto (António Carlos Cortez prestou-lhe a devida atenção aqui nas páginas do JL). 
O mais recente livro da coleção é Memórias Pessoais, de um aposentado catedrático de Literatura Portuguesa na Universidade de Connecticut, que foi doutorando de Jorge de Sena quando este ainda lecionava na Universidade de Wisconsin. 
Até há bem poucos anos era diminuto o número de leitores interessados em livros de memórias, biografias e autobiografias. De repente, esse género (ou géneros) literário(s) ganhou adeptos e hoje as editoras apostam nele porque o público aderiu. E ainda bem. Por isso esta nota é para alertar os interessados a quem a coleção terá escapado.
As Memórias Pessoais de António Cirurgião valem como um exemplo do género, servido numa escrita que é de facto uma peça literária merecedora da atenção dos amantes da língua portuguesa. Para me calçar devidamente nesta afirmação, resumo a biografia do autor antes de me debruçar sobre a obra em si.
António Cirurgião, Professor Emérito da Universidade de Connecticut, EUA, nasceu em Chaves. Estudou Humanidades, Filosofia e Teologia no Seminário Salesiano e Direito na Universidade de Lisboa. Em 1962 foi para a América  estudar Direito, mas optou pelo ensino. Em 1965 concluiu o M.A. em Francês, em Assumption College, Massachusetts, e em 1970, o Ph.D. em Espanhol e Português, na Universidade de Wisconsin, Madison. Ensinou Clássicas e Românicas em Portugal e em 2 colégios e 5 universidades da América. Em 1969 foi para a Universidade de Connecticut ensinar Espanhol e Português até 1999, ano da sua jubilação. Além de outras condecorações, recebeu a comenda da Ordem do Infante D. Henrique e a Citação Oficial da Assembleia Geral, Governador e Ministro da Justiça de Connecticut. É membro de Who’s Who in the World, MLA, Pen Club Internacional, Sociedade Portuguesa de Autores et alia. Conferenciou em congressos literários; deu entrevistas à comunicação social; colaborou em publicações académicas; publicou  Fernão Alvares do Oriente: O Homem e a Obra, Paris: Gulbenkian, 1976; O “olhar esfíngico” da Mensagem de Fernando Pessoa, Lx.ª : ICALP, 1990; A Sextina em Portugal nos Séculos XVI e XVII, Lx.ª: ICALP, 1992; Novas leituras de clássicos portugueses, Lx.ª: Colibri, 1997; Leituras alegóricas de Camões, Lx.ª: IN-CM, 1999; De Eça a Jorge de Sena, Lx.ª: IN-CM, 2009.  Editou, entre outras obras: O Cancioneiro de D. Cecília de Portugal, Lx.ª: Revista do Ocidente, 1972; Fernão Álvares do Oriente, Lusitânia Transformada, Lx.ª: IN-CM, 1985; Duarte Dias, Várias Obras em Língua Portuguesa e Castelhana, Paris: Gulbenkian, 1991; Manuel Quintano de Vasconcelos, A paciência constante - discursos poéticos em estilo pastoril, Lx.ª: IN-CM, 1994; João Nunes Freire, Os Campos Elísios, Lx.ª: BN, 1996.  
O leitor resistente aqui chegado ficou certamente a imaginar umas memórias circunspetas, pesadas, fastidiosas e monótonas. Apraz-me, no entanto, estragar-lhe o preconceito atrevendo-me a afirmar tratar-se do oposto. 
São curtas e deliciosas narrativas que começam com uma coleção de divertidas histórias em torno do sobrenome Cirurgião. Segue-se uma secção dedicada a Sotelinho da Raia, um rosário de primorosas ocorrências na sua terra natal evocando familiares e figuras da sua infância e adolescência narradas com uma ternura eivada de sabedoria e elegância.
O mesmo poderá dizer-se do punhado de histórias americanas, apenas algumas da enorme coleção que o autor tem arquivada em volumes à espera de editor. Idem para as narrativas de eventos inesperados, incómodos ou insólitos, de viagens em países que vão desde a Bolívia à Argentina, a Marrocos, Angola e Moçambique e, naturalmente, o seu amado Portugal onde o autor nunca deixou de viver no seu mais de meio-século de residência nos Estados Unidos. Ao conjunto de narrativas lusitanas, que o autor denomina ironicamente “andarilhagens de um emigrante na velha pátria”, acrescenta-se um inesperado conjunto de histórias cuja protagonista é nada mais nada menos do que Amália Rodrigues. Os insodáveis rumos do destino fizeram com que António Cirurgião a conhecesse de perto. Precisamente em Connecticut. E já que essa figura quase mítica da cultura portuguesa é aqui referida, terei de juntar uma outra estrela nacional sua coeva, lembrada em “Evocando Eusébio”.
O leitor perguntar-me-á numa espécie de contra-argumento: Mas se há já tanto escrito sobre todos estes temas, por que razão hei-de eu interessar-me por um livro desses?
A minha resposta só será cabal depois de o leitor ler o livro, o que é uma contradição parva da minha parte. Todavia avançarei algumas pistas: António Cirurgião escreve num português tão genuinamente vernáculo que qualquer apreciador da nossa língua, com um mínimo de paladar educado nos clássicos, degustará com requintado prazer. Na eventualidade de a atrás resumida informação biográfica sobre o autor assustar alguém dando a impressão de se tratar de um erudito pesadão e entediante, garanto – juro mesmo – que nada disso se aplica a este livro. A língua portuguesa que ressalta destas páginas é tão cristalina, tão suavemente elegante, tão natural e transparente como a água do rio Lima que ressalta da poesia de Diogo Bernardes. A vivência de tantos anos no estrangeiro não conspurcou nem de leve uma escrita fielmente resistente também a todas as estrangeirices que ao longo dos séculos assolaram a nossa língua (quase já pareço o purista Fernando Venâncio, meu velho amigo!).
Se não existissem mais razões, os amantes da língua portuguesa que hoje se queixam da abastardização do nosso vernáculo e têm saudade de saborear bons nacos de prosa terão nestas páginas uma festa.